São Paulo, domingo, 18 de dezembro de 2005

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A POLÊMICA SOBRE A MARQUISE DO IBIRAPUERA

A FAVOR DA MUDANÇA

Ainda o caso da marquise

CARLOS A. C. LEMOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nestes dias, um assunto está a dividir as opiniões, ou as daqueles interessados em salvar a única extremidade livre da grande marquise do parque Ibirapuera ou as daqueles outros companheiros do arquiteto Oscar Niemeyer, que julgam necessário o seu sacrifício para permitir a ordenação do espaço informe hoje existente entre a Oca e o novo teatro.


Um autor vivo de obra tombada ainda mantém sobre ela seus direitos autorais mais que legítimos, e nada mais normal que deseje completá-la


Antes de prosseguirmos, é bom que informemos aos caros leitores a causa dessa controvérsia espantosa. Acontece que o parque, com os seus edifícios até então terminados, serviu de palco para as comemorações do Quarto Centenário de São Paulo, em janeiro de 1954. Naqueles festejos estavam faltando (nem sequer tiveram suas obras iniciadas) a plataforma monumental de entrada portando o símbolo escultural do momento festejatório, justamente batizado por Guilherme de Almeida de "aspiral" cívica paulistana, e o teatro que seria ligado à Oca por passarela perpendicular à extremidade da marquise ali presente. Com esse agenciamento, era a intenção de Niemeyer proporcionar aos visitantes do parque três opções de acesso coberto: ir em frente pela marquise afora, tomar a esquerda para chegar à grande calota de concreto armado ou dirigir-se à direita com destino ao teatro.
Terminadas as comemorações, foi completamente esquecido o fato de o projeto arquitetônico não ter sido construído em sua integridade. Cinqüenta anos depois, não passaria então pela cabeça de qualquer membro da atual freqüência popular a idéia de um teatro ali fronteiro à grande cúpula apelidada de Oca.
Recentemente, o parque e os seus pertences de concreto armado foram tombados pelos órgãos responsáveis pela preservação de nosso patrimônio histórico e artístico.
Pelo que ouvimos e lemos nos jornais, entendem o Conpresp e o DPH, entidades municipais, que tudo aquilo que seja tangível, fora a vegetação arbustiva ou arbórea, está tombado para sempre na forma ou conformação presente no momento do decreto daquele instituto salvaguardador de nossa memória e de nossa cultura material. A partir daquela hora, qualquer construção do Ibirapuera seria "imexível", como diria o ministro esquecível do Collor.
O decreto fixou um momento exato do conjunto arquitetônico, fixou aquilo que hoje é comum chamar de "as built", no falar americano agora impregnado em nossa língua portuguesa coloquial. Devido a isso, por exemplo, seria terminantemente proibida a remoção do Museu de Arte Moderna sob a marquise, bem em frente ao prédio da Bienal, e impensável a construção de qualquer edifício, pois seria obrigação dos vigilantes de plantão proibir qualquer alteração na relação entre a vegetação -ou área livre- e os espaços construídos. Seria sagrada a área permeável do imenso jardim do povo.
Acontece que, no governo de dona Marta Suplicy, não sabemos dos motivos determinantes, foi construído o teatro do parque, mais ou menos no lugar que fora destinado ao auditório no projeto original. Desrespeito total às regras vigentes nas cabeças dos técnicos municipais. Fato consumado, mas politicamente tolerável e logo olvidado, como aconteceu com a demolição criminosa da cobertura das escadas da galeria Prestes Maia, na praça do Patriarca, obra do sempre lembrado Elisiário Bahiana, o autor do conjunto arquitetônico à volta do viaduto do Chá, tombado pela resolução nš 37 de 1992 do Conpresp.
Pelo exposto, ficou o leitor inteirado dos motivos geradores da celeuma em torno dessa hipótese: pode ser demolida parte da ponta hoje sem destino certo da marquise para permitir a adequação do inesperado espaço livre resultante da construção do teatro, como quer, com toda a razão, o autor do projeto do parque, o arquiteto Oscar Niemeyer? Por que quem permitiu a construção do teatro hoje diz "não" à pergunta? Não sabiam todos que daquela permissão iria resultar naturalmente um novo espaço entre as construções? Hoje os tempos são outros, o sistema viário previsto em 1954 também não saiu do papel e já nem se pensa mais em entrada monumental do parque Ibirapuera, e restou à marquise a função de levar os passos dos freqüentadores, já dentro do parque, ao auditório ou à Oca. Com a nova intervenção de Oscar, sua função distributiva estaria restabelecida. Agora, ela simplesmente leva todos ao nada, ou melhor, à chuva, traindo sua razão de ser.
O mesmo leitor alheio às controvérsias teóricas ou conceituais sempre presentes no convívio entre técnicos encarregados do resguardo de nosso "patrimônio" deve ser informado de que todos eles, em seus arrazoados, se estribam nos mesmos pensadores e teóricos, pretensos norteadores dos procedimentos dos conservadores de obras tombadas ou elegidas como merecedoras do respeito público. Os mesmos gurus servem para o bem ou para o mal, conforme o enfoque assumido ou os interesses de alguns.
Na verdade, as regras devem ser analisadas com muito cuidado, porque cada caso é um caso, como diz o jargão vindo das sábias posições dos empíricos, e não nos custa lembrar uma expressão, se não nos enganamos, de autoria de Joelmir Beting: "Na prática, a teoria é outra".
Oscar Niemeyer é, salvo notícia em contrário, o único arquiteto a ter, ainda em vida, sua obra tombada, não só paroquialmente pelo Conpresp, mas pela Unesco, como autor de trabalhos de interesse universal, como no caso de Brasília. Um autor vivo de obra tombada ainda mantém sobre ela seus direitos autorais mais que legítimos, detém sua propriedade intelectual, e nada mais normal que deseje completá-la.
Sua intenção é simplesmente criar uma praça entre aquelas mencionadas obras desarticuladas entre si, inclusive a marquise, para que tudo fique harmonizado dentro da beleza a que está diariamente acostumado. Sua solução estetizante ficará para sempre no usufruto público por gerações e gerações enquanto vão-se os "ecochatos" e os burocratas em seus incessáveis rodízios nas alternâncias políticas.
Finalmente, nestas linhas, vimos solicitar do prefeito José Serra uma enquete entre as pessoas lúcidas desta cidade, entre os usuários do parque Ibirapuera, entre quem quer que seja, destinada a saber a opinião coletiva sobre essa questão do sacrifício da ponta da marquise, porque o bem tombado é de todos, é do povo e não deve estar sob o arbítrio de um, dois ou três iluminados municipais.

Carlos A. C. Lemos é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (Universidade de São Paulo) e autor de "Viagem pela Carne" (Edusp) e "História da Casa Brasileira" (Contexto)


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