São Paulo, sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

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Uma noite no ESGOTO

Medo da chuva e de saques não deixa ninguém dormir bem no Jardim Romano, bairro na zona leste inundado há nove dias

MÁRCIO PINHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Cai a noite no Jardim Romano. A forte chuva recepciona os moradores que chegam do trabalho e veem, frustrados, a água e o esgoto -que há nove dias inundam o bairro na região da zona leste conhecida por Pantanal- subir mais um pouco em suas casas. À frente, uma nova madrugada de preocupação, medo e sono ruim.
Um garoto de 16 anos, numa jangada improvisada, transporta quem não quer andar no escuro pela rua, uma das que estão em pior situação. Quem se aventura enfrenta a água fétida na cintura; cobras passeiam no local. O serviço custa R$ 2,00 por pessoa.
A jangada de Leandro Ferreira é feita da madeira de sua cama, destruída na enchente. Como no "Auto da Barca do Inferno", o jovem leva seus passageiros a um destino indesejado. O barco tem até nome: Titanic.
Medo da água ele diz não ter. Mas, de tanto enfrentá-la, acabou doente e nem tratamento pôde ter. Foi barrado na AMA Jardim Romano porque não tinha RG. Perdeu-o na enchente.
A Folha passou a madrugada na região inundada, com roupas de proteção. Na noite de quarta-feira e na madrugada de quinta, a impossibilidade de descansar com tranquilidade era a realidade do bairro.
As luzes do conjunto habitacional da Caixa, à esquerda, refletem na água da rua Capachós enquanto Dalva Dias, 49, moradora de uma das dezenas de casas inundadas do lado direito, chega em casa. Acaba surpreendida pela água suja acima do tornozelo.
"A água tinha saído. Tanto que limpamos tudo", diz. Na casa, moram ainda o marido, Izildo, 50, e o filho, Rodrigo, 21. "Achamos que algo estava sendo feito e que a enchente tivesse acabando", lamenta.
A família está refugiada no andar de cima da casa. O quarto de dormir abriga hoje também uma cozinha, com fogão e mesa. A planta preferida de Dalva teve de deixar a sala; foi levada para o banheiro para, com seu peso, dificultar a entrada do esgoto pelo vaso sanitário.
Nessa noite, Dalva avisa que ficará em vigília. Por medo. Ela não dorme bem desde o início da enchente, preocupada com a presença de sapos e cobras.
Durante o dia, sua dificuldade é falar com os irmãos. São cinco morando no bairro, todos iniciados por "D": Dario, Diomar, David... Dagmar vive bem em frente à casa da irmã. Embora próximas, também estão "distantes": a rua está alagada. A saída tem sido conversar de longe. Ou pela janela.

Saques
Na madrugada, duplas de guardas-civis se revezam num veículo da Guarda Civil Metropolitana estacionado sob uma tenda. A Polícia Militar também faz rondas no bairro no período. São as únicas autoridades ali.
Mesmo assim e apesar da inundação, rápidos encontros ocorrem no meio da noite. São traficantes de drogas em ação, dizem os moradores.
É justamente a possibilidade de crimes que faz muitos permanecerem em suas casas, mesmo tomadas por água e esgoto, conforme a reportagem constatou.
Luciana dos Santos, 32, seis filhos, mora numa região do bairro bem próxima ao rio Tietê, onde a água nas ruas alcança a cintura das pessoas. A moradora conta que furtaram seus pacotes de arroz, feijão, açúcar e latas de óleo. Os produtos havia sido recebidos por meio de uma doação de igreja.
"Acho triste isso. Uma falta de consideração", diz. "As pessoas tinham que se ajudar, não fazer isso." A solução é também fazer vigília durante a madrugada.

Dilúvio
Sai a noite. No alvorecer na rua Capachós, uma pintura sobre o grande dilúvio bíblico boia na água suja enquanto os moradores deixam suas casas. É hora de ir para o trabalho.
Leandro, estudante, atualmente barqueiro, já se prepara para mais um dia de travessias. De tanto ver repórteres no bairro nos últimos dias, diz querer tornar-se jornalista. Quer mostrar as dificuldades da população que, como a do Jardim Romano, vive em áreas de risco.


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