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Uma noite no ESGOTO
Medo da chuva e de saques não deixa ninguém dormir bem no Jardim Romano, bairro na zona leste inundado há nove dias
MÁRCIO PINHO
DA REPORTAGEM LOCAL
Cai a noite no Jardim Romano. A forte chuva recepciona os
moradores que chegam do trabalho e veem, frustrados, a água
e o esgoto -que há nove dias
inundam o bairro na região da
zona leste conhecida por Pantanal- subir mais um pouco
em suas casas. À frente, uma
nova madrugada de preocupação, medo e sono ruim.
Um garoto de 16 anos, numa
jangada improvisada, transporta quem não quer andar no escuro pela rua, uma das que estão em pior situação. Quem se
aventura enfrenta a água fétida
na cintura; cobras passeiam no
local. O serviço custa R$ 2,00
por pessoa.
A jangada de Leandro Ferreira é feita da madeira de sua cama, destruída na enchente. Como no "Auto da Barca do Inferno", o jovem leva seus passageiros a um destino indesejado. O
barco tem até nome: Titanic.
Medo da água ele diz não ter.
Mas, de tanto enfrentá-la, acabou doente e nem tratamento
pôde ter. Foi barrado na AMA
Jardim Romano porque não tinha RG. Perdeu-o na enchente.
A Folha passou a madrugada
na região inundada, com roupas de proteção. Na noite de
quarta-feira e na madrugada de
quinta, a impossibilidade de
descansar com tranquilidade
era a realidade do bairro.
As luzes do conjunto habitacional da Caixa, à esquerda, refletem na água da rua Capachós enquanto Dalva Dias, 49,
moradora de uma das dezenas
de casas inundadas do lado direito, chega em casa. Acaba
surpreendida pela água suja
acima do tornozelo.
"A água tinha saído. Tanto
que limpamos tudo", diz. Na
casa, moram ainda o marido,
Izildo, 50, e o filho, Rodrigo, 21.
"Achamos que algo estava sendo feito e que a enchente tivesse acabando", lamenta.
A família está refugiada no
andar de cima da casa. O quarto
de dormir abriga hoje também
uma cozinha, com fogão e mesa. A planta preferida de Dalva
teve de deixar a sala; foi levada
para o banheiro para, com seu
peso, dificultar a entrada do esgoto pelo vaso sanitário.
Nessa noite, Dalva avisa que
ficará em vigília. Por medo. Ela
não dorme bem desde o início
da enchente, preocupada com a
presença de sapos e cobras.
Durante o dia, sua dificuldade é falar com os irmãos. São
cinco morando no bairro, todos
iniciados por "D": Dario, Diomar, David... Dagmar vive bem
em frente à casa da irmã. Embora próximas, também estão
"distantes": a rua está alagada.
A saída tem sido conversar de
longe. Ou pela janela.
Saques
Na madrugada, duplas de
guardas-civis se revezam num
veículo da Guarda Civil Metropolitana estacionado sob uma
tenda. A Polícia Militar também
faz rondas no bairro no período.
São as únicas autoridades ali.
Mesmo assim e apesar da
inundação, rápidos encontros
ocorrem no meio da noite. São
traficantes de drogas em ação,
dizem os moradores.
É justamente a possibilidade
de crimes que faz muitos permanecerem em suas casas,
mesmo tomadas por água e esgoto, conforme a reportagem
constatou.
Luciana dos Santos, 32, seis
filhos, mora numa região do
bairro bem próxima ao rio Tietê, onde a água nas ruas alcança
a cintura das pessoas. A moradora conta que furtaram seus
pacotes de arroz, feijão, açúcar
e latas de óleo. Os produtos havia sido recebidos por meio de
uma doação de igreja.
"Acho triste isso. Uma falta de
consideração", diz. "As pessoas
tinham que se ajudar, não fazer
isso." A solução é também fazer
vigília durante a madrugada.
Dilúvio
Sai a noite. No alvorecer na
rua Capachós, uma pintura sobre o grande dilúvio bíblico
boia na água suja enquanto os
moradores deixam suas casas.
É hora de ir para o trabalho.
Leandro, estudante, atualmente barqueiro, já se prepara
para mais um dia de travessias.
De tanto ver repórteres no bairro nos últimos dias, diz querer
tornar-se jornalista. Quer mostrar as dificuldades da população que, como a do Jardim Romano, vive em áreas de risco.
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