São Paulo, quinta, 19 de março de 1998

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INCULTA & BELA
"Reaveu" ou "reouve"?

PASQUALE CIPRO NETO
Colunista da Folha

Terminei a última coluna com a promessa de voltar aos verbos defectivos. E promessa é dívida. Para quem não pôde lê-la, um breve resumo: verbos defectivos são os que não têm conjugação completa. "Colorir", por exemplo, é defectivo. Não existe a primeira pessoa do singular do presente do indicativo. Começa-se a conjugá-lo na segunda do singular: tu colores, ele colore etc.
Durante a eleição de 89, surgiu o ultratristíssimo verbo "collorir". Diariamente os jornais publicavam nomes e nomes de velhas e novas raposas da política brasileira que tinham acabado de "collorir", ou seja, de aderir à candidatura do sócio de PC. Eu brincava com meus alunos, dizendo que a gramática, mais do que sábia, dava o aviso da desgraça iminente: era e é impossível dizer "eu colloro".
Mas o passado é inexorável (atenção: lê-se "inezorável"), e quem "colloriu" está gramaticamente autorizado a dizer "eu collori".
Você já deve ter entendido o xis do problema. Afirmei na última coluna que a ausência de formas na conjugação dos verbos defectivos nunca se dá nos pretéritos e nos futuros, que são sempre completos. O pretérito perfeito de colorir (ou de "collorir") é completo, como o de qualquer outro verbo: eu colori, tu coloriste, ele coloriu etc. Sábia gramática...
Como seria o pretérito perfeito de reaver? Não confunda reaver com rever. Reaver significa "recuperar, haver de novo". Rever significa "ver de novo". Reaver, além de defectivo, é irregular.
Cabe aqui uma explicação: o verbo haver tem muitos significados. Um deles, hoje em desuso, é "possuir, ter". Ninguém diz "Eu hei um automóvel", ou "Quero haver uma casa melhor". Mas em clássicos como Camões e Garret esse sentido é muito presente.
E por que a referência a esse sentido quase arcaico do verbo "haver"? Porque isso explica o significado -atualíssimo- de reaver ("haver de novo", ou seja, "possuir outra vez, retomar a posse"). E explica também a conjugação do pretérito perfeito de reaver.
Você certamente já disse ou ouviu frases como "O que houve?" ou "Houve um acidente". "Houve" é do pretérito perfeito do verbo haver. As gramáticas e os dicionários dizem que o verbo reaver é defectivo e que só é conjugado nas formas em que o verbo haver apresenta a letra "v".
Como o pretérito perfeito de haver é "eu houve, tu houveste, ele houve, nós houvemos, vós houvestes, eles houveram", para conjugar o verbo reaver nesse tempo basta acrescentar o prefixo "re-" (que significa "de novo") e -é claro- eliminar o "h". Então o pretérito perfeito de reaver é "eu reouve, tu reouveste, ele reouve etc.".
Não é raro ouvirmos ou lermos algo como "Ele reaveu todo o dinheiro". De onde sai a forma "reaveu"? Do processo de "regularização" da conjugação verbal. Se sofrer é sofreu, beber é bebeu, perder é perdeu, então reaver é reaveu. Mas não é. E esta coluna já explicou por quê.
Em tempo: o presente de haver é "eu hei, tu hás, ele há, nós havemos (ou hemos), vós haveis (ou heis), eles hão". Então o presente de reaver é apenas "nós reavemos, vós reaveis". Na língua culta, não se diz "ele reavê", "nem ele reaveu". No presente, a alternativa é trocar por "recupera, retoma a posse". É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna todas as quintas-feiras

E-mail: inculta@uol.com.br



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