São Paulo, segunda-feira, 19 de abril de 2004

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MOACYR SCLIAR

A arte de dar explicações

1. Supondo que você esteja numa situação assim:
 Acusado de matar casal Staheli no Rio muda depoimento de novo. O caseiro Jossiel Conceição dos Santos, 20, mudou mais uma vez a sua versão sobre a sua suposta participação no assassinato do executivo Zera Todd Staheli e de sua mulher, Michelle. Foi a sexta vez que ele alterou o depoimento desde que confessou o crime pela primeira vez, no dia 1º de abril. Cotidiano Online, 13.abr.2004

O que dizer?
Diga que o fato não importa, o que importa é a versão. Diga que a vida é assim mesmo, que o ser humano só chega à verdade mediante contraditórias tentativas. Diga que seis versões até nem representam muito: há políticos capazes de dar dez ou mais versões de seus atos. Diga que criar versões é um exercício de imaginação a que toda pessoa tem direito. Diga que, se negarem a você esse direito, na próxima versão você declarará que não conhece nenhum casal americano e que nunca foi caseiro e que nem sabe do que a imprensa está falando.

2. Ou supondo que você esteja numa situação assim:
 Acusado de golpe devolve duas obras de arte. O acusado, que se diz marchand, devolveu à polícia de São Paulo dois dos três trabalhos de arte com os quais desaparecera no dia 18 de fevereiro pelas portas dos fundos do hotel Intercontinental. "Devolvi porque todos os trabalhos são falsos", disse. Cotidiano Online, 13.abr.2004

O que dizer?
Diga que você é um grande, ainda que modesto, conhecedor de arte. Diga que você faz parte de uma secreta organização de peritos empenhada em desmascarar falsificações no mundo todo. Diga que, para atingir esse generoso objetivo, os membros dessa organização recorrem a qualquer artifício, incluindo encenações. Diga que você não se importa de ser acusado ou até mesmo de ser humilhado: o que você quer, acima de tudo, é a verdade na arte.

3. Ou, finalmente, supondo que você esteja numa situação assim:
 Falso policial comia e bebia de graça em casas noturnas de SP. Comida e bebida de graça em boates e casas noturnas. Usando carteira funcional falsa da Polícia Civil, ele se identificava como investigador do Denarc (Departamento de Investigações sobre Narcóticos) para consumir nos estabelecimentos comerciais sem pagar nada. Cotidiano, 13.abr.2004

O que dizer?
Diga que você está, sim, trabalhando, não para o Denarc, mas para uma grande organização, cujo nome você não pode revelar. Diga que o objetivo dessa organização é investigar o consumo de uísque falsificado em casas noturnas. E diga que o seu disfarce colaboraria para isso: afinal, uma casa que fornece uísque falsificado até para um policial, fornecerá uísque falsificado para qualquer outra pessoa, com o que toda e qualquer moralidade terá chegado a um fim inglório.


Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em reportagens publicadas no jornal.


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