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MOACYR SCLIAR
A arte de dar explicações
1. Supondo que você esteja
numa situação assim:
Acusado de matar casal Staheli no
Rio muda depoimento de novo. O caseiro Jossiel Conceição dos Santos,
20, mudou mais uma vez a sua versão sobre a sua suposta participação
no assassinato do executivo Zera
Todd Staheli e de sua mulher, Michelle. Foi a sexta vez que ele alterou o
depoimento desde que confessou o
crime pela primeira vez, no dia 1º de
abril. Cotidiano Online, 13.abr.2004
O que dizer?
Diga que o fato não importa, o que importa é a versão.
Diga que a vida é assim mesmo,
que o ser humano só chega à verdade mediante contraditórias
tentativas. Diga que seis versões
até nem representam muito: há
políticos capazes de dar dez ou
mais versões de seus atos. Diga
que criar versões é um exercício
de imaginação a que toda pessoa
tem direito. Diga que, se negarem
a você esse direito, na próxima
versão você declarará que não
conhece nenhum casal americano e que nunca foi caseiro e
que nem sabe do que a imprensa
está falando.
2. Ou supondo que você esteja numa situação assim:
Acusado de golpe devolve duas obras
de arte. O acusado, que se diz marchand, devolveu à polícia de São
Paulo dois dos três trabalhos de arte
com os quais desaparecera no dia 18
de fevereiro pelas portas dos fundos
do hotel Intercontinental. "Devolvi
porque todos os trabalhos são falsos",
disse. Cotidiano Online, 13.abr.2004
O que dizer?
Diga que você é um grande, ainda que modesto, conhecedor de arte. Diga que você faz
parte de uma secreta organização
de peritos empenhada em desmascarar falsificações no mundo
todo. Diga que, para atingir esse
generoso objetivo, os membros
dessa organização recorrem a
qualquer artifício, incluindo
encenações. Diga que você não se
importa de ser acusado ou até
mesmo de ser humilhado: o que
você quer, acima de tudo, é a
verdade na arte.
3. Ou, finalmente, supondo
que você esteja numa situação
assim:
Falso policial comia e bebia de graça
em casas noturnas de SP. Comida e
bebida de graça em boates e casas
noturnas. Usando carteira funcional
falsa da Polícia Civil, ele se identificava como investigador do Denarc
(Departamento de Investigações sobre Narcóticos) para consumir nos
estabelecimentos comerciais sem pagar nada. Cotidiano, 13.abr.2004
O que dizer?
Diga que você está, sim,
trabalhando, não para o Denarc,
mas para uma grande organização, cujo nome você não pode revelar. Diga que o objetivo dessa
organização é investigar o consumo de uísque falsificado em casas
noturnas. E diga que o seu disfarce colaboraria para isso: afinal,
uma casa que fornece uísque falsificado até para um policial, fornecerá uísque falsificado para
qualquer outra pessoa, com o que
toda e qualquer moralidade terá
chegado a um fim inglório.
Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção
baseado em reportagens publicadas no
jornal.
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