São Paulo, sexta-feira, 19 de maio de 2006

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GUERRA URBANA /ANÁLISE

Para a procuradora Flávia Piovesan, é preciso revisar a política de segurança

Combate ao crime exige ações articuladas

FLÁVIA PIOVESAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

O pesadelo do último dia 15 será sempre lembrado como a data da institucionalização da barbárie, em que a ordem restou acuada pela decretação de um estado de sítio ditado pelo império do crime organizado. Com máxima articulação e eficiência, o crime organizado disseminou o terror, o pânico e o medo coletivo. Em rasgada afronta ao Estado de Direito, instalou-se o Estado da Natureza, marcado pela violência, pela força e pela brutalidade, deixando o trágico saldo de dezenas de vítimas.
Duas perguntas emergem. Como compreender o alto grau de articulação e eficácia do crime organizado? Como enfrentá-lo?


O adequado enfrentamento do crime requer informação, inteligência e estratégia


Estruturado em bases hierárquicas, rígida disciplina e códigos de conduta, o crime organizado constitui atividade extremamente rentável, a seduzir um exército de jovens excluídos que, sem outras alternativas, somam-se às fileiras da corporação criminosa. Com grau de sofisticação, o crime organizado enraiza-se, infiltra-se e transnacionaliza-se, por vezes contando com a promíscua facilitação de agentes públicos, que passam também a ser seus diretos beneficiários em esquema de perversa corrupção.
O adequado enfrentamento do crime organizado requer informação, inteligência, estratégia e perspicácia. Requer a adoção de medidas preventivas e repressivas, sob o prisma da transversalidade da segurança pública. Essencial é prevenir o crime, mediante experiências inovadoras e criativas, que permitam a desarticulação criminosa, bem como punir os seus perpetradores, operando com a certeza da punição. A resposta ao crime organizado demanda ações integradas, conjuntas e articuladas. Requer a profunda revisão da política de segurança pública e a reestruturação das polícias (por meio da integração das polícias civis e militares, capacitação, treinamento e tecnologia), com a mútua cooperação na esfera federativa, entre União, Estados, municípios e Distrito Federal. Requer esforço conjunto dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e demais instituições e setores sociais, como o Ministério Público, as universidades e o setor privado, a fim de que políticas e práticas exitosas sejam identificadas e multiplicadas. Respostas solitárias, isoladas e atomizadas jamais serão suficientes para combater a complexidade do crime organizado. A barbárie do medo e do terror deve fomentar este "pacto inter-institucional", para que, à luz das molduras do Estado democrático de Direito, sejam inventadas e fortalecidas ações e políticas, integradas e articuladas, para prevenir e erradicar o terror e punir os seus responsáveis.
Em situações-limite, como a presente, é que verdadeiramente se testa a consolidação do Estado de Direito e solidez das instituições democráticas. Firmeza, serenidade, lucidez, razoabilidade e equilíbrio são fundamentais para evitar que respostas impulsivas e imediatistas façam perpetuar a lógica da barbárie e sua irracionalidade, sem um impacto efetivo na criminalidade organizada. As lições do pós 11 de Setembro atestam o equívoco de comprometer o aparato civilizatório de direitos e liberdades em nome da segurança máxima e do uso arbitrário da força. Não se pode combater o terror com instrumentos do próprio terror, fomentando o jogo da mera retaliação, sob pena de instauração de um temerário terrorismo de Estado.


Não se pode combater o terror com instrumentos do próprio terror


Urgente é o desmantelamento do crime organizado e o combate à impunidade, com o uso racional da força e com a universalização do Estado de Direito e não do Estado da Natureza. É necessário justiça e não vingança. O apelo ao Estado de Direito é a única via capaz de nos libertar da barbárie.

Flávia Piovesan, 37, professora doutora da PUC-SP nas disciplinas de direitos humanos e direito constitucional, procuradora do Estado de São Paulo e membro do Conselho dos Direitos da Pessoa Humana


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