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São Paulo, domingo, 19 de outubro de 2003

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DANUZA LEÃO

A raiva ajuda

Têm dias na vida em que está tudo péssimo, e ela até tenta um exercício mental para saber o que poderia lhe trazer algum prazer; mas logo descobre que nada, rigorosamente nada, pode melhorar aquele dia tão ruim.
Tenta trocar uma idéia com os amigos e vê que estão todos perfeitamente normais, alguns contentes, outros até felizes, o que não dá a ela nem mesmo inveja. Quando está muito mal, não existe, nem por um minuto, a esperança de que as coisas possam melhorar. Está ruim e vai continuar assim para sempre (pelo menos, é o que ela acha); e ainda por cima não tem com quem falar -aliás, tanto faz ter ou não ter.
Se estivesse chovendo, seria melhor, mas sofrer com sol e céu azul, francamente, não combina. Toma um tranquilizante ou uma bebida? Nada: são 11h da manhã, e o dia promete ser longo.
É angústia, angústia das brabas, e não adianta tentar disfarçar. Televisão não dá, ler nem pensar, e conversar, só com alguém que esteja tão ruim quanto; bem que procurou, mas as pessoas com quem falou estavam todas razoavelmente bem, o que só fez piorar o seu estado. Paciência: em algum momento vai passar; vai ter que passar.
Resolve descobrir as razões que a puseram nesse estado. No trabalho está tudo bem; nos amores, nada de mais nem de menos; a família, OK, nenhuma traição de amigo foi descoberta, a balança está acusando o mesmo peso, as contas estão pagas e a saúde anda boa. Então? Mas é claro: há uma semana, num gesto heróico, ela deixou de fumar.
No princípio foi lindo: se sentiu uma mulher tão maravilhosa, tão cheia de força de vontade, que essa imagem foi mais forte do que qualquer falta que pudesse eventualmente sentir do vício. Mas hoje ela trocaria o carro por um cigarro; o carro, os anéis, o apartamento, a alma, tudo, por aquele ridículo tubinho de papel de dez centímetros de comprimento, cheio de tabaco dentro. Afinal, é uma mulher ou uma barata? Uma voz lá no fundo dela responde, bem baixinho: "uma barata", e pior, sem o menor pudor.
Vamos falar sério: a vida não é fácil, mas a gente vai conseguindo vencer os obstáculos; até daquele homem que amava desesperadamente conseguiu se esquecer, e agora está sofrendo por um mísero cigarro? Não está certo, não pode se conformar de ser vencida por um inimigo tão feio, malcheiroso, insignificante e idiota.
Segue as recomendações para as horas do aperto: beber um grande copo de água, sair do sofá e dar uma volta no quarteirão, pensar em outra coisa. Em chocolate? Numa praia do Nordeste? Em Tom Cruise? Mas como, se trocaria tudo isso e o céu também por um cigarro, por metade de um cigarro de qualquer marca, por duas tragadas, não, por uma só, uma só resolveria todos os problemas.
Vício safado esse; além de ser legalmente permitido, um maço custa R$ 2, pode ser comprado em qualquer botequim ou banca de jornal, e ser vista fumando não é -ainda- um gesto anti-social que vai fazer desmoronar sua família, você ser demitida do emprego, internada numa clínica de desintoxicação ou presa.
Agora ela não vai fumar só de raiva e pensa em sugerir a nossos caros governantes subir o preço de um maço de cigarros para R$ 30 e um mês de trabalho comunitário num hospital de doenças respiratórias a quem for apanhado fumando na rua, para não dar o mau exemplo.
E, para quem quiser saber, a raiva desse vício ridículo bem que ajuda a passar a vontade de fumar.

E-mail - danuza.leao@uol.com.br


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