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São Paulo, domingo, 19 de outubro de 2003

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SP 450

Fotógrafo que vive em São Paulo desde 1930 acompanhou e registrou eventos que marcaram a história da cidade

História que as imagens contam

EDER CHIODETTO
EDITOR DE FOTOGRAFIA

Entre 1920 e 1930, Desidério Farkas e a mulher, Tereza, cruzaram várias vezes o Atlântico entre a Hungria, seu país natal, e o porto de Santos, ponto mais próximo de São Paulo, onde em 1920 ele abriu uma pequena loja de produtos fotográficos, a Fotoptica, na rua São Bento, no centro da cidade. Numa dessas idas e vindas, em 1924, nasceu, do lado de lá do oceano, Thomaz Farkas, que viria a se tornar um misto de empresário, engenheiro e fotógrafo.
Na chegada definitiva da família a São Paulo, Desidério perguntou a Lászlo, seu sócio, como estava a situação do país. A resposta foi enfática: "O Brasil está em crise".
Desidério enxergou a possibilidade de contornar a tal crise ampliando seus negócios com a fotografia, então uma atividade que não estava popularizada e que estimulava a curiosidade.
Dessa forma, em 1930, ele, sua mulher e o pequeno Thomaz desembarcaram no porto de Santos, subiram a serra do Mar e foram morar na rua México, no Jardim América, na capital paulista.
Curiosamente, na memória de Thomaz não ficou gravada uma imagem dessa viagem, mas sim o cheiro de café queimado que exalava em torno da estação ferroviária de Santos. "Naquela época os agricultores queimavam parte da safra para não deixar cair o preço no mercado. Eu me lembro daquele cheiro até hoje."
Thomaz foi matriculado na escola alemã Olinda, que tinha sede na praça Roosevelt, onde estudou até 1933. Com o recrudescimento do nazismo na Europa, a família, de origem judaica, decidiu transferi-lo para o Colégio Rio Branco, então na rua Dr. Vila Nova.
Com os amigos do colégio e vizinhos da nova casa, na rua Itaperuna, no Pacaembu, Thomaz formou a "Esquadrilha Invencível", um grupo de dez garotos que, montados em suas bicicletas, percorriam as ruas sem asfalto do bairro até a "biquinha", uma mina d'água no imenso descampado onde mais tarde surgiria o estádio municipal. Além da bicicleta, o passatempo predileto de Thomaz era a fotografia. "Como o papai tinha a loja, eu sempre tive acesso às câmeras e filmes. Fotografei muito desde criança."

NO ESTRIBO DO BONDE

Hoje, em sua casa, há inúmeros álbuns com fotos dessa época. "Um dos meus primeiros modelos foi o Hitler, um gatinho que tinha uma mancha com o formato que lembrava o bigode de Adolf Hitler", conta Thomaz.
Quando acabou o colégio, em 41, optou por estudar engenharia na escola Politécnica. "Para chegar à escola era muito divertido: eu andava até a esquina da avenida Paulista com a rua da Consolação, onde pegava o bonde. Ele estava sempre lotado e eu viajava até a praça Ramos me equilibrando no estribo. Depois, atravessava o viaduto do Chá e, no largo São Bento, pegava um ônibus para a Politécnica, que ficava na avenida Tiradentes, ao lado da cadeia. Durante as aulas, a gente ouvia os presos cantando: "Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós"."
Entre a faculdade e a loja na rua São Bento, Thomaz passou a conhecer tudo o que havia de interessante. No Teatro Municipal, foi atraído pelas imagens da Escola de Bailado. No edifício Martinelli ficava o cinema Rosário, um dos melhores da cidade na época, onde o fotógrafo assistiu a estréia de "Fantasia" de Walt Disney, em agosto de 1941.
A fotografia de Thomaz Farkas daria um salto de qualidade quando, no final da década de 40, o Foto Clube Bandeirante inaugurou sua sede ao lado da Fotoptica, na rua São Bento. O fotoclube organizava salões, acirrados concursos e foi um movimento que impulsionou a fotografia no Brasil. Teve, nas figuras de artistas como Geraldo de Barros, José Oiticica Filho, German Lorca e o próprio Thomaz Farkas, os fundadores do que viria a ser conhecido como a fotografia moderna brasileira.
As experiências fotográficas dessa época levaram Farkas a ampliar seus temas. O estádio do Pacaembu passaria a ser personagem principal de um de seus trabalhos mais memoráveis. Quando o estádio foi inaugurado, em abril de 1940, Thomaz e seus amigos assistiam aos jogos sobre um morrinho que havia do lado de fora e de onde era possível avistar apenas metade do gramado. Depois de algum tempo ele se tornou amigo de um porteiro do estádio, que liberava sua entrada. Nessa ocasião pôde fotografar a torcida, elegantemente vestida de terno e chapéu, e os meninos que se apinhavam nos galhos das árvores na tentativa de assistir aos jogos.
Durante a Segunda Guerra (1939-1945), Farkas lembra de aviões sobrevoando a avenida Paulista. Em maio de 45, fotografou as festas nas ruas em comemoração ao fim do conflito.
Em 1946, ele se formou em engenharia mecânica e, em 47, casou-se e foi morar na rua Avanhandava, em uma casa construída pelo arquiteto Oswaldo Bratke, hoje transformada em restaurante. Por essa época, começou a frequentar reuniões no Masp, quando a sede ainda era na rua 7 de Abril, no prédio dos "Diários Associados", de Assis Chateubriand. "Comecei a dar aulas de fotografia no museu e fiquei amigo do Pietro Maria Bardi, da Lina Bo Bardi e do Geraldo de Barros. Fui uma das pessoas que assinou a ata de fundação do museu. Em 1948, eu faria no próprio museu minha primeira exposição individual, que foi também a primeira mostra de fotografia do Masp", conta.
Outro evento marcante para o fotógrafo foram os festejos do quarto centenário da cidade e a inauguração do parque do Ibirapuera, em 1954. "Lembro-me de um show memorável do Pixinguinha e seu grupo no Ibirapuera. Foi um marco. Até então o samba não era bem-visto em São Paulo e, depois desse show, as coisas começaram a se modificar. Filmei essa apresentação e estou pensando em transformá-lo num documentário", afirma.
Nos anos 60 Farkas documentou a construção e inauguração de Brasília e passou a priorizar o cinema em detrimento da fotografia. "Quando acirrou o cerco da ditadura, na metade dos anos 70, recebi a visita de Joris Iven, um documentarista holandês, que projetou um filme dele, chamado "Paralelo 17", para mim e para uns amigos. O filme tratava da guerra do Vietnã. No meio da projeção um "amigo" levantou, disse que aquilo era coisa de comunista, saiu e me denunciou. Fiquei detido por uma semana no Doi-Codi da rua Tutóia, no Paraíso. Foi apavorante", conta.

QUANDO A CRISE CHEGA

Após a morte de seu pai, Thomaz passou a dirigir a rede Fotoptica, que chegou a ter mais de 20 lojas, abriu uma galeria, a primeira a priorizar a fotografia em São Paulo, e lançou a revista "Novidades Fotoptica", que durante seus 110 números movimentou o cenário da fotografia brasileira. Há seis anos rendeu-se à tal crise anunciada pelo sócio de seu pai em 1930 e vendeu a rede para o banco que lhe cobrava pesados juros.
Mas o prazer de circular pelo centro persiste: "Hoje vou menos para a região da rua São Bento, mas gosto muito de passear por lá e perceber as mudanças. Mudaram a paisagem, as lojas, o estilo das pessoas. Tem muito mais gente circulando. Não sou nostálgico, gosto de viver o tempo presente. Acho a cidade excitante, viva. A nostalgia eu deixo nos álbuns de fotografia que gosto de fazer e preservar. Meus netos adoram olhar esses álbuns e ver como era a cidade. De alguma forma a memória da cidade irá perdurar nas minhas fotografias", afirma.


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