São Paulo, sábado, 19 de novembro de 2005

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LETRAS JURÍDICAS

França entre o aviso e a imprevisão

WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA

O Estado Moderno (nome próprio atribuído pelos juristas às organizações nacionais independentes) passa por reavaliação de seu relacionamento com a sociedade. Quando o povo está insatisfeito, entre outros males pela falta de garantias que a ordem interna devia assegurar-lhe, passa a desafiar as instituições e chega-se a uma situação pré-revolucionária. Ou seja: a violência se sobrepõe ou se contrapõe à ordem e, em desafios crescentes, quer obter pela revolta a reparação das deficiências e agressões que o direito não preserva nem tem sido equipamento social ou judicial apto a preservar.
Quando o grau de ebulição social descamba na desordem, como se tem visto na França, as soluções enunciadas pelos juristas submergem na onda da crise. Em outras palavras: o direito, talvez por ser estático e formal, malgrado sua inerente força de coerção, perde a expressão social. Os detentores ocasionais do poder, seduzidos pela vantagem fácil, mas ao mesmo tempo transitória, querem nas democracias a aplicação do direito, em formas sempre mais duras. Estão na mesma posição os que orbitam ao redor do poder. Sustentam argumentos incapazes de produzirem efeito calmante em face dos que se revoltam. O pedido de restauração da ordem e do direito, com a prisão ou o afastamento dos agitadores das arruaças, é hipócrita. Eles querem proteger seus próprios interesses ameaçados.
Nem sempre o retorno à normalidade é feito sem dor. A segunda metade do século 19 mostrou a extraordinária influência da Revolução Francesa. Começada em 1789, produziu efeitos na Europa no quarto de século seguinte para assegurar a soberania do povo. Abriu ao mundo a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Não eclodiu de repente. Focos de insurreição se desdobraram para levar à queda da monarquia, restaurada por Napoleão em 1799, com a recomposição da estrutura do Estado.
Se a história desse período se repetir, será em novas bases. Os tempos são outros. Estamos na era da globalização, da comunicação instantânea, da eletrônica na escrita, no som, na imagem, na voz, acessível a todos, aptos e não aptos a compreender o que se passa. Os Estados Unidos mantiveram esta semana o direito exclusivo de controle da "web" por mais cinco anos. Talvez seja prazo suficiente para a lenta instalação do BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China), esse grupo estranhíssimo e heterogêneo, impossível de dialogar, mas dialogando, formado por gigantes territoriais, com imensas riquezas naturais, mas ao mesmo tempo de impossível ocupação pela força. Poderão mudar o direito internacional público e privado. Para eles e entre eles, a estratégia universal, em relações internas e externas foram mudadas, pela comunicação e pelo mercado.
O rompimento das barreiras jurídicas na velha Europa chamou atenção para a França das últimas semanas. Começou, porém, na Holanda, há uns 30 anos, com as invasões de prédios pelos "sem-teto" de lá. Continuou em Berlim, na Alemanha dividida. Ameaça Nova Orleans. Subsiste em Chicago e Detroit. A França de Robespierre, Danton, Marat e Mirabeau, de 1789, apesar das mudanças antigas, faz pensar no futuro. É um aviso. O direito terá de se ajustar às novas circunstâncias por mais que os juristas sejam conservadores. No mundo globalizado, ainda parece possível a preservação substancial de pelo menos três palavras-chave: Estado (com povo, soberania, território e gestão eficiente), democracia (permitida a livre substituição legal dos governantes, pelo voto) e direito (preservação das garantias fundamentais do indivíduo contra o Estado).


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