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LETRAS JURÍDICAS
França entre o aviso e a imprevisão
WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA
O Estado Moderno (nome
próprio atribuído pelos juristas às organizações nacionais
independentes) passa por reavaliação de seu relacionamento com
a sociedade. Quando o povo está
insatisfeito, entre outros males
pela falta de garantias que a ordem interna devia assegurar-lhe,
passa a desafiar as instituições e
chega-se a uma situação pré-revolucionária. Ou seja: a violência
se sobrepõe ou se contrapõe à ordem e, em desafios crescentes,
quer obter pela revolta a reparação das deficiências e agressões
que o direito não preserva nem
tem sido equipamento social ou
judicial apto a preservar.
Quando o grau de ebulição social descamba na desordem, como se tem visto na França, as soluções enunciadas pelos juristas
submergem na onda da crise. Em
outras palavras: o direito, talvez
por ser estático e formal, malgrado sua inerente força de coerção,
perde a expressão social. Os detentores ocasionais do poder, seduzidos pela vantagem fácil, mas
ao mesmo tempo transitória, querem nas democracias a aplicação
do direito, em formas sempre
mais duras. Estão na mesma posição os que orbitam ao redor do
poder. Sustentam argumentos incapazes de produzirem efeito calmante em face dos que se revoltam. O pedido de restauração da
ordem e do direito, com a prisão
ou o afastamento dos agitadores
das arruaças, é hipócrita. Eles
querem proteger seus próprios interesses ameaçados.
Nem sempre o retorno à normalidade é feito sem dor. A segunda
metade do século 19 mostrou a
extraordinária influência da Revolução Francesa. Começada em
1789, produziu efeitos na Europa
no quarto de século seguinte para
assegurar a soberania do povo.
Abriu ao mundo a Declaração
Universal dos Direitos do Homem. Não eclodiu de repente. Focos de insurreição se desdobraram para levar à queda da monarquia, restaurada por Napoleão em 1799, com a recomposição da estrutura do Estado.
Se a história desse período se repetir, será em novas bases. Os
tempos são outros. Estamos na
era da globalização, da comunicação instantânea, da eletrônica
na escrita, no som, na imagem,
na voz, acessível a todos, aptos e
não aptos a compreender o que se
passa. Os Estados Unidos mantiveram esta semana o direito exclusivo de controle da "web" por
mais cinco anos. Talvez seja prazo suficiente para a lenta instalação do BRIC (Brasil, Rússia, Índia
e China), esse grupo estranhíssimo e heterogêneo, impossível de
dialogar, mas dialogando, formado por gigantes territoriais, com
imensas riquezas naturais, mas
ao mesmo tempo de impossível
ocupação pela força. Poderão
mudar o direito internacional
público e privado. Para eles e entre eles, a estratégia universal, em
relações internas e externas foram mudadas, pela comunicação
e pelo mercado.
O rompimento das barreiras jurídicas na velha Europa chamou
atenção para a França das últimas semanas. Começou, porém,
na Holanda, há uns 30 anos, com
as invasões de prédios pelos "sem-teto" de lá. Continuou em Berlim,
na Alemanha dividida. Ameaça
Nova Orleans. Subsiste em Chicago e Detroit. A França de Robespierre, Danton, Marat e Mirabeau, de 1789, apesar das mudanças antigas, faz pensar no futuro.
É um aviso. O direito terá de se
ajustar às novas circunstâncias
por mais que os juristas sejam
conservadores. No mundo globalizado, ainda parece possível a
preservação substancial de pelo
menos três palavras-chave: Estado (com povo, soberania, território e gestão eficiente), democracia
(permitida a livre substituição legal dos governantes, pelo voto) e
direito (preservação das garantias fundamentais do indivíduo
contra o Estado).
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