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ARTIGO
O médico, o estilista e a vontade de comer
ANNA VERONICA MAUTNER
COLUNISTA DA FOLHA
ALGUNS poucos ainda
continuam a dizer que
comer pode ser um prazer. Cá entre nós, a grande
maioria dos seres humanos come, deixa de comer, controla-se, vive fazendo uma complexa
contabilidade ininterrupta e
vai transformando e complicando (não pode hoje pra poder
comer amanhã, come isso mas
não aquilo, além dos tabus),
acompanhando aquilo que deveria ser tão natural comer.
A porta régia por onde entrou a ciência na intimidade da
nossa alma foi a medicina. A
medicalização do cotidiano
derrubou a ponte, que desde os
tempos imemoriais mantinha a
cultura dos grupos. De geração
em geração vamos misturando
-experiência, superstição,
bom senso- para organizar o
jeito que comemos.
Alimentação não é somente
receita de comida -isto é, o jeito de fazer. A alimentação humana é muito mais abrangente
do que isso, ela define o que se
planta, o que se gasta, como se
guarda. Cada povo, cada subgrupo sempre teve sua culinária de acordo com os recursos
naturais de onde viviam. Que se
coma mais peixe à beira-mar do
que no alto de montanha é apenas natural.
Essa relação íntima com a
natureza micou. A refrigeração,
os recursos da química, a facilidade de locomoção mudaram
tudo isso. Vieram as especiarias
do Oriente, os frutos do Ocidente, e, antes que tudo ou
mais, a culinária foi se globalizando sem aviso prévio. Tornou-se muito mais fácil engordar, já que movimentamo-nos
menos e comemos o ano inteiro
de tudo vindo de todos os lugares. Só mesmo jabuticaba, umbu e mais algumas frutinhas é que ficaram sazonais e locais.
Enquanto isso, a moda de
roupa também se universalizou
através da confecção, que passou a produzir em série o que
antes era feito sob medida para
cada indivíduo. No momento
em que se começa a comprar
roupa feita, perdemos a liberdade de ter qualquer tamanho
de corpo. Tem que ser nos tamanhos existentes, ou tem de
mandar fazer e fica muito caro.
Se antes o gordo era visto como
privilegiado, que podia comer
muito e trabalhar pouco, passou a ser melhor, mais adequado, aquele que cabe dentro das
roupas das grandes marcas.
Esse é o passo marcante da
relação do homem com a comida. Poder comprar a roupa que
vejo na vitrine, aquela que todo
mundo está usando, entrou de
supetão na liberdade de comer.
Daí para a dominação do estilista que cria os modelos que
homens e mulheres vão querer
usar é apenas um pequeno salto. Quem manda é quem inventa a moda. Ora, é muito mais fácil vestir uma tábua do que uma
gorda. Na magra, as diferenças
genéticas são menores porque,
nas normalmente avantajadas,
as medidas -cintura alta, cintura baixa, seios grandes, muita
cadeira, barriga e coxas- são
extremamente variadas quando começam a aparecer algumas gordurinhas distribuídas
geneticamente da avó para a
mãe e da mãe para a filha. Sendo magricela, isso não aparece.
O estilista, pois, cria para as
magras e as mulheres querem
poder vestir com facilidade as
roupas que são criadas.
Um terceiro elemento aparece com toda força: o mundo do
espetáculo. Queremos ser vistos, queremos aparecer, não
queremos destoar. Sonhamos
com os holofotes que iluminam
as modelos. Toda moça quer
também. A maneira mais segura, mais pessoal, acessível é começar querendo ser magra. Para isso, basta fechar a boca e
prestar uma atenção louca a cada milímetro do corpo. Tudo de
graça disponível para cada
uma. É pela magreza que uma
jovem se compara à outra. É
por aí que ela pode ser melhor
ou pior, estar mais perto de um
certo tipo de consagração.
Ser gordo -ou melhor, não
ser magro- denota fragilidade
na relação com a força de vontade. Não se conter é doença da
cabeça das competitivas jovens. Cada grama a mais é uma
condenação ao ostracismo, como se os olhos masculinos só
fossem naturalmente atraídos
pelo corpo que os estilistas consideram mais fácil vestir.
Assim, colocando no mesmo
balaio a procura por um estrelato, o interesse dos estilistas e
a medicalização do alimento,
encontramos essa síndrome
perversa que é a anorexia. São
as moças modernas, fortes,
com força de vontade que acabam atrofiando seu organismo
e morrendo de fome diante de
um mundo cheio de comida.
Uns escolhem desobedecer à
ciência e manter o prazer de comer enquanto outros mantêm-se fortes, inflexíveis, rejeitando
o prazer pelo autocontrole.
Elas resistem muitas vezes até
morrer, como são os casos recentemente retratados.
ANNA VERONICA MAUTNER , psicanalista da
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é a autora de "Cotidiano nas Entrelinhas"
(editora Ágora)
amautner@uol.com.br
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