São Paulo, domingo, 19 de novembro de 2006

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ARTIGO

O médico, o estilista e a vontade de comer

ANNA VERONICA MAUTNER
COLUNISTA DA FOLHA

ALGUNS poucos ainda continuam a dizer que comer pode ser um prazer. Cá entre nós, a grande maioria dos seres humanos come, deixa de comer, controla-se, vive fazendo uma complexa contabilidade ininterrupta e vai transformando e complicando (não pode hoje pra poder comer amanhã, come isso mas não aquilo, além dos tabus), acompanhando aquilo que deveria ser tão natural comer.
A porta régia por onde entrou a ciência na intimidade da nossa alma foi a medicina. A medicalização do cotidiano derrubou a ponte, que desde os tempos imemoriais mantinha a cultura dos grupos. De geração em geração vamos misturando -experiência, superstição, bom senso- para organizar o jeito que comemos.
Alimentação não é somente receita de comida -isto é, o jeito de fazer. A alimentação humana é muito mais abrangente do que isso, ela define o que se planta, o que se gasta, como se guarda. Cada povo, cada subgrupo sempre teve sua culinária de acordo com os recursos naturais de onde viviam. Que se coma mais peixe à beira-mar do que no alto de montanha é apenas natural.
Essa relação íntima com a natureza micou. A refrigeração, os recursos da química, a facilidade de locomoção mudaram tudo isso. Vieram as especiarias do Oriente, os frutos do Ocidente, e, antes que tudo ou mais, a culinária foi se globalizando sem aviso prévio. Tornou-se muito mais fácil engordar, já que movimentamo-nos menos e comemos o ano inteiro de tudo vindo de todos os lugares. Só mesmo jabuticaba, umbu e mais algumas frutinhas é que ficaram sazonais e locais.
Enquanto isso, a moda de roupa também se universalizou através da confecção, que passou a produzir em série o que antes era feito sob medida para cada indivíduo. No momento em que se começa a comprar roupa feita, perdemos a liberdade de ter qualquer tamanho de corpo. Tem que ser nos tamanhos existentes, ou tem de mandar fazer e fica muito caro.
Se antes o gordo era visto como privilegiado, que podia comer muito e trabalhar pouco, passou a ser melhor, mais adequado, aquele que cabe dentro das roupas das grandes marcas.
Esse é o passo marcante da relação do homem com a comida. Poder comprar a roupa que vejo na vitrine, aquela que todo mundo está usando, entrou de supetão na liberdade de comer.
Daí para a dominação do estilista que cria os modelos que homens e mulheres vão querer usar é apenas um pequeno salto. Quem manda é quem inventa a moda. Ora, é muito mais fácil vestir uma tábua do que uma gorda. Na magra, as diferenças genéticas são menores porque, nas normalmente avantajadas, as medidas -cintura alta, cintura baixa, seios grandes, muita cadeira, barriga e coxas- são extremamente variadas quando começam a aparecer algumas gordurinhas distribuídas geneticamente da avó para a mãe e da mãe para a filha. Sendo magricela, isso não aparece.
O estilista, pois, cria para as magras e as mulheres querem poder vestir com facilidade as roupas que são criadas.
Um terceiro elemento aparece com toda força: o mundo do espetáculo. Queremos ser vistos, queremos aparecer, não queremos destoar. Sonhamos com os holofotes que iluminam as modelos. Toda moça quer também. A maneira mais segura, mais pessoal, acessível é começar querendo ser magra. Para isso, basta fechar a boca e prestar uma atenção louca a cada milímetro do corpo. Tudo de graça disponível para cada uma. É pela magreza que uma jovem se compara à outra. É por aí que ela pode ser melhor ou pior, estar mais perto de um certo tipo de consagração.
Ser gordo -ou melhor, não ser magro- denota fragilidade na relação com a força de vontade. Não se conter é doença da cabeça das competitivas jovens. Cada grama a mais é uma condenação ao ostracismo, como se os olhos masculinos só fossem naturalmente atraídos pelo corpo que os estilistas consideram mais fácil vestir.
Assim, colocando no mesmo balaio a procura por um estrelato, o interesse dos estilistas e a medicalização do alimento, encontramos essa síndrome perversa que é a anorexia. São as moças modernas, fortes, com força de vontade que acabam atrofiando seu organismo e morrendo de fome diante de um mundo cheio de comida.
Uns escolhem desobedecer à ciência e manter o prazer de comer enquanto outros mantêm-se fortes, inflexíveis, rejeitando o prazer pelo autocontrole.
Elas resistem muitas vezes até morrer, como são os casos recentemente retratados.


ANNA VERONICA MAUTNER , psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é a autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (editora Ágora)

amautner@uol.com.br

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