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PASQUALE CIPRO NETO
"Quer o senhor vender-mos?"
No último vestibular da
UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), havia algumas questões sobre uma crônica
de Machado de Assis, escrita em
26/ 6/1888, que assim começa:
"Suponha o leitor que possuía duzentos escravos no dia 12 de maio
e que os perdeu com a lei de 13 de
maio. Chegava eu ao seu estabelecimento e perguntava-lhe: -Os
seus libertos ficaram todos?
-Metade só; ficaram cem. Os
outros cem dispersaram-se; consta-me que andam por Santo Antônio de Pádua.
-Quer o senhor vender-mos?"
Uma das questões dessa prova
tinha este enunciado: "A frase
"Quer o senhor vender-mos?" poderia ser reescrita, segundo uma
perspectiva contemporânea e coloquial, da seguinte maneira: a)
O senhor quer me vender esses libertos?; b) O senhor quer-me os
vender?; c) O senhor quer me vender-lhes?; d) O senhor mos quer
vender os libertos?; e) Quer o senhor me os vender?".
A que se deve a cláusula "segundo uma perspectiva contemporânea e coloquial"? Vamos por partes. Ao empregar a forma "mos",
Machado se valeu de uma construção comum no Brasil na época
em que o texto foi escrito (e comum ainda hoje em Portugal, na
escrita e em alguns registros
orais). Esse "mos" resulta de "me"
+ "os", em que o oblíquo "me" representa o complemento indireto
de "vender" (o ser ao qual se vende algo -o eu do narrador, no
caso), e o oblíquo "os" representa
o complemento direto (o que se
vende -"os libertos", no caso).
Machado é apenas um dos escritores brasileiros em cuja obra
se encontra esse tipo de combinação de pronomes. Em "O Homem
que Sabia Javanês", de Lima Barreto (que morreu em 1922), encontra-se esta passagem: "Às portas da morte, ele mo deu e disse-me o que prometera ao pai". O
"o" que forma o "mo" representa
"livro", citado anteriormente.
Para não deixar de fora os autores portugueses, pode-se citar
um clássico exemplo de Fernando
Pessoa (Álvaro de Campos), de
"Dobrada à Moda do Porto":
"Não é prato que se possa comer
frio, / Mas trouxeram-mo frio".
No Brasil de hoje, essas combinações de pronomes oblíquos não
são mais usadas (seja na escrita,
seja na fala), mas, como sempre
digo, ninguém morre por conhecer formas em desuso. Um bom
guarda-roupa lingüístico não se
forma só de peças modernas. A
questão da UFSCar é boa, sim,
porque avalia a competência de
leitura de um dos tantos registros
da língua -o clássico, no caso.
Vamos para a segunda parte da
cláusula imposta pela banca (a
da perspectiva coloquial). Se tivéssemos o desdobramento puro e
simples da forma "mos" e a sua
substituição pela correspondente
coloquial contemporânea, teríamos "O senhor quer me vender
eles?". Na oralidade brasileira, há
muito tempo os pronomes "ele(s)"
e "ela(s)" substituíram as formas
"o(s)" e "a(s)". Na linguagem escrita formal culta, isso ainda está
longe de acontecer. Talvez para
não entrar nesse ponto (delicado)
da questão, a banca preferiu trabalhar com o substantivo ("libertos") representado pelo pronome
"os", presente em "mos".
A esta altura, o leitor já sabe
que a resposta é "a" ("O senhor
quer me vender esses libertos?").
Destaquem-se a anteposição do
sujeito ("o senhor") e o emprego
do oblíquo ("me") "solto" entre as
formas verbais "quer" e "vender",
o que é típico da oralidade. É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
E-mail - inculta@uol.com.br
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