São Paulo, quinta-feira, 20 de abril de 2006

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PASQUALE CIPRO NETO

"Quer o senhor vender-mos?"

No último vestibular da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), havia algumas questões sobre uma crônica de Machado de Assis, escrita em 26/ 6/1888, que assim começa: "Suponha o leitor que possuía duzentos escravos no dia 12 de maio e que os perdeu com a lei de 13 de maio. Chegava eu ao seu estabelecimento e perguntava-lhe: -Os seus libertos ficaram todos?
-Metade só; ficaram cem. Os outros cem dispersaram-se; consta-me que andam por Santo Antônio de Pádua.
-Quer o senhor vender-mos?"
Uma das questões dessa prova tinha este enunciado: "A frase "Quer o senhor vender-mos?" poderia ser reescrita, segundo uma perspectiva contemporânea e coloquial, da seguinte maneira: a) O senhor quer me vender esses libertos?; b) O senhor quer-me os vender?; c) O senhor quer me vender-lhes?; d) O senhor mos quer vender os libertos?; e) Quer o senhor me os vender?".
A que se deve a cláusula "segundo uma perspectiva contemporânea e coloquial"? Vamos por partes. Ao empregar a forma "mos", Machado se valeu de uma construção comum no Brasil na época em que o texto foi escrito (e comum ainda hoje em Portugal, na escrita e em alguns registros orais). Esse "mos" resulta de "me" + "os", em que o oblíquo "me" representa o complemento indireto de "vender" (o ser ao qual se vende algo -o eu do narrador, no caso), e o oblíquo "os" representa o complemento direto (o que se vende -"os libertos", no caso).
Machado é apenas um dos escritores brasileiros em cuja obra se encontra esse tipo de combinação de pronomes. Em "O Homem que Sabia Javanês", de Lima Barreto (que morreu em 1922), encontra-se esta passagem: "Às portas da morte, ele mo deu e disse-me o que prometera ao pai". O "o" que forma o "mo" representa "livro", citado anteriormente.
Para não deixar de fora os autores portugueses, pode-se citar um clássico exemplo de Fernando Pessoa (Álvaro de Campos), de "Dobrada à Moda do Porto": "Não é prato que se possa comer frio, / Mas trouxeram-mo frio".
No Brasil de hoje, essas combinações de pronomes oblíquos não são mais usadas (seja na escrita, seja na fala), mas, como sempre digo, ninguém morre por conhecer formas em desuso. Um bom guarda-roupa lingüístico não se forma só de peças modernas. A questão da UFSCar é boa, sim, porque avalia a competência de leitura de um dos tantos registros da língua -o clássico, no caso.
Vamos para a segunda parte da cláusula imposta pela banca (a da perspectiva coloquial). Se tivéssemos o desdobramento puro e simples da forma "mos" e a sua substituição pela correspondente coloquial contemporânea, teríamos "O senhor quer me vender eles?". Na oralidade brasileira, há muito tempo os pronomes "ele(s)" e "ela(s)" substituíram as formas "o(s)" e "a(s)". Na linguagem escrita formal culta, isso ainda está longe de acontecer. Talvez para não entrar nesse ponto (delicado) da questão, a banca preferiu trabalhar com o substantivo ("libertos") representado pelo pronome "os", presente em "mos".
A esta altura, o leitor já sabe que a resposta é "a" ("O senhor quer me vender esses libertos?"). Destaquem-se a anteposição do sujeito ("o senhor") e o emprego do oblíquo ("me") "solto" entre as formas verbais "quer" e "vender", o que é típico da oralidade. É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
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