São Paulo, quinta-feira, 20 de maio de 2004

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PASQUALE CIPRO NETO

"Nem aquilo a que me entrego..."

Neste espaço, já tratei diversas vezes do emprego do pronome relativo associado a uma preposição ("de que", "do/ da qual", "em que", "no/na qual", "a que", "ao/à qual" etc.). Revendo a última prova do ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica), encontrei esta questão:
"Assinale a opção em que o uso do pronome não está de acordo com a norma padrão escrita: a) O cineasta sofreu um derrame, do qual não iria se recuperar mais; b) O rosto e a voz do cineasta são aqueles os quais estamos acostumados, talvez um pouco mais...; c) Estar doente era uma realidade sobre a qual não sabia nada, sobre a qual jamais havia pensado; d) O cinema não é mais um meio; torna-se um fim, no qual o autor é a principal referência;
e) Depois de três cirurgias às quais se submetera, teve um ataque cardíaco".
Sei que o leitor já deve estar curioso pela resposta, portanto é melhor dizer logo que a alternativa a ser marcada é a...
Qual é, caro leitor? É a "b". Nela, faltou a preposição regida por "acostumados" ("a" ou "com"). A frase adequada à norma padrão escrita, portanto, é "...são aqueles aos quais (ou "com os quais') estamos acostumados...".
Como sempre digo, mais importante do que acertar a resposta é entender os mecanismos pelos quais se chega a ela. No caso do emprego das preposições com os relativos, o raciocínio é razoavelmente simples: basta "ver antes" a preposição regida por um verbo ou nome que vêm adiante.
Tradução: "ver antes" significa levar em conta que o termo regente da preposição que antecede o relativo vem depois dos dois. Tradução da tradução: em "O cineasta sofreu um derrame, do qual não iria se recuperar mais" (frase da alternativa "a"), o regente da preposição "de" é o verbo "recuperar" (se alguém se recupera, recupera-se de). Esse "de" se funde com o "o" do relativo "o qual" ("de" + "o qual" = "do qual").
Convém notar que na frase da alternativa "e" ("Depois de três cirurgias às quais se submetera...") o "às" resulta da fusão da preposição "a" com o "as" do relativo "as quais" (que recupera "cirurgias"). De onde vem a preposição "a"? De "submeter-se" (se alguém se submete, submete-se a algo). Se a palavra feminina "cirurgias" fosse trocada pela masculina "exames", o "às" se transformaria em "aos" ("...três exames aos quais se submetera").
Razoavelmente corriqueiro em provas de tendências diversas, o emprego adequado do relativo nas variedades formais da língua é diferente do que se nota nos registros informais, em que são comuns, por exemplo, construções como "A rua que eu moro" ou "A comida que eu mais gosto". Nos registros formais, essas construções se transformam, respectivamente, em "A rua em que/na qual (eu) moro" e "A comida de que/ da qual (eu) mais gosto".
Na comovente canção "Canteiros" (música de Raimundo Fagner sobre poema de Cecília Meireles), há um belo exemplo do emprego formal do conjunto preposição + pronome relativo: "Nem aquilo a que me entrego já me dá contentamento". A forma "a que" resulta do encontro da preposição "a", regida por "entregar-se" (se alguém se entrega, entrega-se a algo ou a alguém), com o pronome relativo "que" (que retoma o demonstrativo "aquilo"). É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras

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