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PASQUALE CIPRO NETO
"Nem aquilo a que me entrego..."
Neste espaço, já tratei diversas vezes do emprego do
pronome relativo associado a
uma preposição ("de que", "do/
da qual", "em que", "no/na qual",
"a que", "ao/à qual" etc.). Revendo a última prova do ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica), encontrei esta questão:
"Assinale a opção em que o uso
do pronome não está de acordo
com a norma padrão escrita: a) O
cineasta sofreu um derrame, do
qual não iria se recuperar mais;
b) O rosto e a voz do cineasta são
aqueles os quais estamos acostumados, talvez um pouco mais...;
c) Estar doente era uma realidade
sobre a qual não sabia nada, sobre a qual jamais havia pensado;
d) O cinema não é mais um meio;
torna-se um fim, no qual o autor
é a principal referência;
e) Depois de três cirurgias às
quais se submetera, teve um ataque cardíaco".
Sei que o leitor já deve estar curioso pela resposta, portanto é
melhor dizer logo que a alternativa a ser marcada é a...
Qual é, caro leitor? É a "b". Nela, faltou a preposição regida por
"acostumados" ("a" ou "com"). A
frase adequada à norma padrão
escrita, portanto, é "...são aqueles
aos quais (ou "com os quais') estamos acostumados...".
Como sempre digo, mais importante do que acertar a resposta é
entender os mecanismos pelos
quais se chega a ela. No caso do
emprego das preposições com os
relativos, o raciocínio é razoavelmente simples: basta "ver antes"
a preposição regida por um verbo
ou nome que vêm adiante.
Tradução: "ver antes" significa
levar em conta que o termo regente da preposição que antecede o
relativo vem depois dos dois. Tradução da tradução: em "O cineasta sofreu um derrame, do qual
não iria se recuperar mais" (frase
da alternativa "a"), o regente da
preposição "de" é o verbo "recuperar" (se alguém se recupera, recupera-se de). Esse "de" se funde
com o "o" do relativo "o qual"
("de" + "o qual" = "do qual").
Convém notar que na frase da
alternativa "e" ("Depois de três
cirurgias às quais se submetera...") o "às" resulta da fusão da
preposição "a" com o "as" do relativo "as quais" (que recupera
"cirurgias"). De onde vem a preposição "a"? De "submeter-se" (se
alguém se submete, submete-se a
algo). Se a palavra feminina "cirurgias" fosse trocada pela masculina "exames", o "às" se transformaria em "aos" ("...três exames aos quais se submetera").
Razoavelmente corriqueiro em
provas de tendências diversas, o
emprego adequado do relativo
nas variedades formais da língua
é diferente do que se nota nos registros informais, em que são comuns, por exemplo, construções
como "A rua que eu moro" ou "A
comida que eu mais gosto". Nos
registros formais, essas construções se transformam, respectivamente, em "A rua em que/na qual
(eu) moro" e "A comida de que/
da qual (eu) mais gosto".
Na comovente canção "Canteiros" (música de Raimundo Fagner sobre poema de Cecília Meireles), há um belo exemplo do emprego formal do conjunto preposição + pronome relativo: "Nem
aquilo a que me entrego já me dá
contentamento". A forma "a que"
resulta do encontro da preposição
"a", regida por "entregar-se" (se
alguém se entrega, entrega-se a
algo ou a alguém), com o pronome relativo "que" (que retoma o
demonstrativo "aquilo"). É isso.
Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras
E-mail - inculta@uol.com.br
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