São Paulo, quinta-feira, 20 de junho de 2002

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PASQUALE CIPRO NETO

"Do que a terra mais garrida..."

Amanhã é o dia. Ou vai ou racha. Antes do embate, como sempre, alguns jogadores e muitos torcedores tentarão cantar o hino nacional. O começo sempre vai bem: "Ouviram do Ipiranga...". E agora? É "as margens plácidas" ou "às margens plácidas"? Para cantar, não faz a menor diferença, já que "as" e "às" se emitem do mesmo modo.
Deixemos a cantoria para lá e fiquemos com a escrita, em que a opção por "as" ou "às" muda tudo. Volta e meia, algum vestibular tradicionalista pergunta qual é o sujeito da primeira oração da letra do hino. Quem supõe que a forma oficial seja "às" vota logo em "indeterminado".
Não há acento nesse "as". Não porque eu ache ou não queira que não exista. Não há porque não há, porque o texto oficial é "as margens", sem acento. O sujeito da primeira oração da letra do hino é "as margens plácidas do Ipiranga". "E margens ouvem?", perguntarão alguns. Ouvem, sim, caro leitor. Temos aí a figura da "prosopopéia", pela qual se dão atributos de seres animados a seres inanimados.
Bem, antes da prosopopéia, é preciso levar em conta que no hino há muitas orações cujos termos não estão dispostos na ordem direta. É esse o caso de "Ouviram do Ipiranga as margens plácidas/ De um povo heróico o brado retumbante", que, na ordem direta, passaria a "As margens plácidas do Ipiranga ouviram o brado retumbante de um povo heróico". Foram elas, as margens plácidas ("calmas", "serenas") do Ipiranga, que ouviram o brado ("clamor", "grito") retumbante ("estrondoso") de um povo heróico.
Que nome tem a figura da inversão? Depende. Genericamente, essa figura é chamada de "hipérbato". Quando a inversão é mais ou menos forte, ocorre anástrofe. Para o "Aurélio", o início do hino constitui exemplo de anástrofe.
Bem, sobre a polêmica do "as" ou "às", vale a pena citar um cochilo de uma versão eletrônica do "Aurélio", anterior à lançada em 99 ("Novo Aurélio Século XXI"). No verbete "anástrofe", o dicionário dá como exemplo justamente a primeira oração da letra do hino, com o bendito acento indicador de crase no "as" ("às"). A alegria de quem insiste em achar que existe o acento acaba assim que o próprio dicionário se encarrega de escrever o trecho na ordem direta, sem o acento: "As margens plácidas do Ipiranga ouviram o brado retumbante...".
Se existisse o acento, a expressão "às margens plácidas" seria adjunto adverbial e, por isso, não iniciaria a ordem direta; encerrá-la-ia ("Ouviram o brado retumbante de um povo heróico às margens plácidas do Ipiranga). Na edição eletrônica do "Novo Aurélio", o cochilo foi eliminado.
Por fim, vale a pena lembrar que, além da inversão da ordem dos termos, há no hino a inversão da ordem de algumas orações: "Do que a terra mais garrida/ Teus risonhos, lindos campos têm mais flores". Na ordem direta, teríamos "Teus risonhos, lindos campos têm mais flores do que a terra mais garrida [tem"".
Por falar em garrida, nada de imaginar que o solo pátrio tenha o que se quer que os jogadores tenham no embate de amanhã, ou seja, a garra. "Garrida" significa "enfeitada", "vistosa", "elegante", "que dá na vista". É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.
E-mail - inculta@uol.com.br


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