São Paulo, segunda-feira, 20 de outubro de 2008

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MOACYR SCLIAR

Conquistas culinárias


Mal tinham entrado no quarto, porém, ele se deu conta de um erro que tinha cometido na receita

Homem "pilota fogão" para seduzir mulheres. Os chamados gastrossexuais formam o que uma pesquisa britânica apontou como "homens bem resolvidos que têm como hobby fazer pratos elaborados". A pesquisa do instituto britânico Future Foundation, feita com mil homens no Reino Unido, mostra que 48% dos entrevistados dizem que ser capaz de cozinhar os torna mais atraentes para as mulheres. A explicação para isso, segundo Carmita Abdo, coordenadora do Projeto Sexualidade do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, não está ligada somente ao aspecto gastronômico. "O homem que cozinha passa uma imagem de ser menos machista, menos ligado aos valores tradicionais, menos preconceituoso, mais carinhoso e mais atento às novas tendências", afirma Abdo. "A sedução ocorre por ele ser uma pessoa agradável, porque serve, dá um presente, oferece algo que ele próprio elaborou, que deu um pouco de si para fazê-lo." Cotidiano, 12.out.08

 
DURANTE MESES Jorge tentou conquistar Aline. A bela advogada, sua colega de trabalho, recusava todos os convites -para jantar, para ir ao teatro- muitas vezes com um sorriso de desprezo. Aquilo estava deixando Jorge desesperado. Boa pinta, galante, nunca tinha passado por um vexame assim. E já estava a ponto de desistir, quando, depois de uma reunião de trabalho, Aline fez um comentário que se revelou verdadeiramente inspirador. "Adoro homens que cozinham", ela disse.
De imediato um plano se esboçou na mente de Jorge. Não, ele não cozinhava, não era do tipo conhecido como gastrossexual; na verdade, nem tinha muito interesse por culinária. Mas faria qualquer coisa para ter Aline. Naquele mesmo dia foi em busca de um curso de culinária. Ao professor, pediu um curso intensivo: explicou que se tratava de uma necessidade urgente (e era urgente mesmo). Precisava aprender a preparar um prato, um único prato que fosse, mas bem sofisticado. O professor pensou um pouco e sugeriu filé de namorado com molho de pistache. Namorado? Melhor que isso, só um prato afrodisíaco. Jorge topou em seguida.
Seguiram-se as aulas -várias, porque ele não sabia sequer como acender o fogão. Mas era um homem inteligente, aprendia rápido, e, ao cabo de três dias, o professor declarou que ele já podia tentar sua aventura culinária. Sem demora Jorge convidou Aline, e a ocasião não poderia ser mais propícia: ela faria aniversário daí a dois dias. A advogada aceitou, encantada.
Jorge esperou-a, em seu elegante apartamento, de avental, e sem demora começou a preparar o prato.
Foi um desastre. Ele até conseguiu terminar a difícil operação, mas o peixe ficou muito ruim. A decepção dele era mais que visível, tão visível que Aline acabou rindo: tudo bem, Jorge, você tentou, agora deixe isso e vamos para a cama.
Foram. Mal tinham entrado no quarto, porém, ele se deu conta de um erro que tinha cometido na receita. Pediu licença, voltou à cozinha, acrescentou os ingredientes que faltavam -e uma hora depois o peixe estava pronto. Radiante, ele ia anunciar à moça que agora podiam jantar- mas ela, claro, já tinha ido embora. Ele comeu sozinho o peixe. E concluiu que não estava de todo ruim. Algum futuro na culinária ele tinha.

MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha

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