São Paulo, domingo, 21 de março de 2004

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DANUZA LEÃO

Um mundo sem desejos

A melhor coisa de ser criança é não ter que escolher nada, resolver nada, optar por nada, decidir nada; esses direitos -e obrigações- são exclusivamente dos adultos.
Começando do princípio: uma criança nunca sabe o que vai comer, nem onde vai, que roupa deve usar e não é responsável por coisa alguma. Se a geladeira está vazia, a televisão com defeito ou a empregada faltou, não é problema dela. Trocando em miúdos, ela não tem responsabilidade sobre rigorosamente nada nem é obrigada a se posicionar em relação a coisa alguma.
Também não é dona de sua vida, o que, pensando bem, pode ser uma benção -pelo menos às vezes. Dá trabalho ser adulto, tomar conta da sua própria existência e no futuro tomar conta da existência dos filhos, pelo menos enquanto eles são pequenos; pensando bem, para o resto da vida. E mais cedo do que imagina também dos netos, sem se esquecer de, a cada encontro, lembrar que não se pode transar sem camisinha. Mudaram muito as reuniões familiares.
Os mais experientes sabem de tudo, dizem, e por isso são sempre chamados nos momentos difíceis. Na hora da viagem, são eles que cuidam dos passaportes, das reservas de avião, do hotel, das vacinas. Se alguém da família ficar doente, eles são consultados, levam ao médico certo, e nas folgas das babás e viagem dos filhos saem com uma malinha para tomar conta das casas -e dos netos. Depois, voltam para casa com a mesma malinha e uma lembrancinha da viagem, numa boa -é o que acham e dizem.
"Criança não tem vontade." Quem nasceu antes dos anos 50 passou a infância ouvindo esse refrão, mas só querendo uma coisa: crescer e virar adulto rapidamente para ganhar dinheiro, ser independente e dono do seu nariz.
Ter o direito de fazer o que quiser, chegar em casa na hora que quiser -ou não chegar- e sobretudo não ter que telefonar para dizer que vai dormir fora de casa, nem onde nem com quem. Virar adulto é ter direito a ter vontades, ou melhor, a desejar.
Os desejos: são eles os culpados de tudo, pois sem desejos não existiriam as guerras, e a paz entre os povos e no seio das famílias seria permanente.
Se os homens não desejassem os carros do ano, os apartamentos, os barcos, os aviões e todas as mulheres do mundo, e se essas mulheres não almejassem os vestidos e as jóias mais caras, não existiriam escândalos financeiros; as casas seriam iguais, as pessoas se vestiriam da mesma maneira e todos comeriam a mesma comida sem nem saber que a vida pode ser diferente.
Sem o desejo não haveria razão para estudar, saber mais e progredir. Sem a inquietação que vem com os desejos, as almas ficariam mornas, os corações, apaziguados, os dias correriam calmos e serenos e as pessoas se limitariam a constatar -apenas a constatar- que está fazendo sol, sem ao menos desejar que caísse uma chuva daquelas para lavar a alma, molhar o corpo e voltar correndo para casa se abraçar com uma pessoa querida.
Ninguém desejaria a mulher do próximo e acabaria sem desejar a sua própria, por falta de desejo.
Sem os desejos, o mundo entraria numa era de paz, como tanto desejam o papa e os chefes de Estado, e como os jornais e as televisões não teriam o que noticiar, deixariam de existir.
Sem desejos, a vida seria calma e as pessoas seriam felizes, sem nada que pudesse perturbar suas mentes. Nada.
É isso: sem desejos não haveria nada.

E-mail - danuza.leao@uol.com.br


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