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DANUZA LEÃO
Um mundo sem desejos
A melhor coisa de ser criança é não ter que escolher nada, resolver nada, optar por nada,
decidir nada; esses direitos -e
obrigações- são exclusivamente
dos adultos.
Começando do princípio: uma
criança nunca sabe o que vai comer, nem onde vai, que roupa deve usar e não é responsável por
coisa alguma. Se a geladeira está
vazia, a televisão com defeito ou a
empregada faltou, não é problema dela. Trocando em miúdos,
ela não tem responsabilidade sobre rigorosamente nada nem é
obrigada a se posicionar em relação a coisa alguma.
Também não é dona de sua vida, o que, pensando bem, pode ser
uma benção -pelo menos às vezes. Dá trabalho ser adulto, tomar
conta da sua própria existência e
no futuro tomar conta da existência dos filhos, pelo menos enquanto eles são pequenos; pensando bem, para o resto da vida.
E mais cedo do que imagina também dos netos, sem se esquecer de,
a cada encontro, lembrar que não
se pode transar sem camisinha.
Mudaram muito as reuniões familiares.
Os mais experientes sabem de
tudo, dizem, e por isso são sempre
chamados nos momentos difíceis.
Na hora da viagem, são eles que
cuidam dos passaportes, das reservas de avião, do hotel, das vacinas. Se alguém da família ficar
doente, eles são consultados, levam ao médico certo, e nas folgas
das babás e viagem dos filhos
saem com uma malinha para tomar conta das casas -e dos netos. Depois, voltam para casa com
a mesma malinha e uma lembrancinha da viagem, numa boa
-é o que acham e dizem.
"Criança não tem vontade."
Quem nasceu antes dos anos 50
passou a infância ouvindo esse refrão, mas só querendo uma coisa:
crescer e virar adulto rapidamente para ganhar dinheiro, ser independente e dono do seu nariz.
Ter o direito de fazer o que quiser, chegar em casa na hora que
quiser -ou não chegar- e sobretudo não ter que telefonar para dizer que vai dormir fora de
casa, nem onde nem com quem.
Virar adulto é ter direito a ter
vontades, ou melhor, a desejar.
Os desejos: são eles os culpados
de tudo, pois sem desejos não
existiriam as guerras, e a paz entre os povos e no seio das famílias
seria permanente.
Se os homens não desejassem os
carros do ano, os apartamentos,
os barcos, os aviões e todas as mulheres do mundo, e se essas mulheres não almejassem os vestidos
e as jóias mais caras, não existiriam escândalos financeiros; as
casas seriam iguais, as pessoas se
vestiriam da mesma maneira e
todos comeriam a mesma comida
sem nem saber que a vida pode
ser diferente.
Sem o desejo não haveria razão
para estudar, saber mais e progredir. Sem a inquietação que vem
com os desejos, as almas ficariam
mornas, os corações, apaziguados, os dias correriam calmos e serenos e as pessoas se limitariam a
constatar -apenas a constatar- que está fazendo sol, sem ao
menos desejar que caísse uma
chuva daquelas para lavar a alma, molhar o corpo e voltar correndo para casa se abraçar com
uma pessoa querida.
Ninguém desejaria a mulher do
próximo e acabaria sem desejar a
sua própria, por falta de desejo.
Sem os desejos, o mundo entraria numa era de paz, como tanto
desejam o papa e os chefes de Estado, e como os jornais e as televisões não teriam o que noticiar,
deixariam de existir.
Sem desejos, a vida seria calma
e as pessoas seriam felizes, sem
nada que pudesse perturbar suas
mentes. Nada.
É isso: sem desejos não haveria
nada.
E-mail - danuza.leao@uol.com.br
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