São Paulo, domingo, 21 de março de 2004

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SAÚDE

Vírus, descoberto em 1992, sobrevive até 72 horas fora do corpo e em minúsculas quantidades de sangue

2,4 milhões têm hepatite C sem saber

AURELIANO BIANCARELLI
DA REPORTAGEM LOCAL

As hepatites virais vêm sendo chamadas de a "Aids do século 21". Tratadas dessa forma, parecem uma ameaça distante. Puro engano de ótica. Já há sete vezes mais portadores da hepatite C do que gente vivendo com HIV/Aids.
E existem agravantes: o vírus C, transmitido pelo sangue, só foi identificado em 1992. Pessoas que fizeram transfusão de sangue antes disso, ou tomaram injeção no tempo em que a seringa de vidro era fervida na caixinha de metal, podem ser portadores do vírus. Da mesma forma, quem dividiu ou divide alicates de unha, navalhas ou cortadores de barba, quem colocou piercing, fez tatuagem ou quem compartilhou escova de dentes também acabou sendo exposto ao risco.
Diferentemente do HIV, o vírus da hepatite chega a sobreviver 72 horas fora do corpo e em minúsculas quantidades de sangue. Por isso os consultórios de dentistas e ambientes hospitalares são locais de risco de infecção.
No Brasil, o Ministério da Saúde estima que existam 3 milhões de pessoas infectadas, 140 mil delas estão na capital paulista. Desse total, quase 80% não sabem da infecção, e entre os que descobriram, mais de 40% não imaginam como contraiu a doença.
A hepatite C pode demorar de 20 a 30 anos para se manifestar. E, quando isso ocorre, a maioria já está com fibrose em estágio 4, próximo da cirrose ou do câncer de fígado. Para muitos, só resta a fila do transplante, na qual mais de 40% vão morrer antes de conseguir um órgão.
A gravidade da doença está fazendo soar o alarme nos órgãos públicos e na sociedade civil. "Estamos organizando os serviços", diz Jerusa Maria Figueiredo, coordenadora do programa de hepatites virais do Ministério da Saúde.
Está descartada, ao menos por enquanto, a testagem indiscriminada -os serviços de saúde não teriam condições de lidar com um número tão grande de portadores do vírus. A estratégia é convidar para testes pessoas que acreditam ter vivido situações de riscos.
No Paraná, por exemplo, todas as unidades básicas de saúde fazem a triagem sorológica. Em São Paulo, a Secretaria da Saúde vem distribuindo folhetos que trazem informações sobre as hepatites B e C, diz como se pega, lista os cuidados e relaciona os serviços que podem fazer o diagnóstico na cidade. "Já foi feita uma primeira ação em estabelecimentos de beleza e em dentistas", diz Evaldo Stanislau Affonso de Araujo, coordenador da área de hepatites na Secretaria Municipal de Saúde.
Com base em dados do Pro-Aim -programa da prefeitura que monitora as causas de morte-, ele diz que, de 1996 a 2003, as mortes por hepatites virais, na faixa de 15 a 65 anos, ocupam o terceiro lugar, depois das doenças do coração e das mortes violentas.
Segundo Araujo, a porcentagem de infectados passa de 1,42%, na população paulistana em geral, para 3,5%, entre aqueles acima de 60 anos. Daí a preocupação com transplantes, muitas vezes a única esperança para pacientes. Equipes estão sendo treinadas em sete hospitais para agilizar e aumentar as doações de órgão.
Há uma década, o governo poderia ter adotado os exames da hepatite C em conjunto com os testes para o HIV, segundo ONGs, muitas criadas nos últimos anos. "Cerca de 80% das infecções, sobretudo entre os mais velhos, foram causadas por transfusões", diz Jeová Pessin, presidente do Grupo Esperança, de Santos.
"Não há campanhas governamentais suficientes", diz Sidnei Moura Nehme, 58, que preside a ONG Transpática, de São Paulo.
A luta pelo direito aos medicamentos na rede pública foi comandada pelas ONGs. O Interferon, associado à Ribavirina, era a medicação oferecida pelo Estado. O surgimento do Interferon Peguilado, elevando a R$ 5.000 o custo mensal do tratamento, se limitava aos portadores da hepatite C do genótipo 1. Hoje, segundo as ONGs, a Justiça também garante essa medicação a portadores do genótipo 2 e 3. Os testes, necessários para o acompanhamento da medicação, também estariam em vias de serem normalizados.
O Interferon Peguilado também se mostrou eficaz no tratamento de portadores de co-infecção da hepatite C com o HIV, conforme estudo apresentado no Congresso Internacional sobre Estudos do Fígado, realizado nesta semana em Salvador (BA).
Segundo a médica Maria Cássia Mendes Corrêa, coordenadora de hepatites da Casa da Aids do Hospital das Clínicas, a cura com esse medicamento chega a 40%, segundo estudo com 868 pacientes co-infectados em 19 países. "Sem a medicação, os pacientes de Aids morrem pela hepatite C", diz ela.


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