São Paulo, domingo, 21 de março de 1999

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VISÃO POLICIAL
Delegados e promotores dizem que corrupção no alto escalão é mais sofisticada e difícil de apurar
Investigadores afirmam que a corrupção cresceu na gestão Pitta

VAGUINALDO MARINHEIRO
Editor de Cotidiano

ROGERIO SCHLEGEL
Editor-assistente de Cotidiano

A força-tarefa que investiga a máfia da propina e reúne Polícia Civil e Ministério Público está convencida de que a corrupção na prefeitura paulistana cresceu durante a gestão Celso Pitta.
"Aquela rebelião (de vereadores), que houve no início do governo Pitta, fez com que o esquema se fortalecesse ainda mais. Isso serviu para, em alguma medida, legitimar os esquemas", afirma o promotor José Carlos Blat, 35.
Na ocasião, Pitta ameaçou tirar dos vereadores o poder de indicar os administradores regionais. Ameaçado por uma CPI sobre os precatórios, Pitta recuou.
"A coisa ficou muito mais avacalhada de um tempo para cá. De um ano para cá, o prefeito está refém da Câmara", diz o delegado Naief Saad Neto, 45.
Os quatro concordam que conseguiram reunir provas de corrupção contra vereadores e um secretário municipal porque eles praticam uma corrupção "vulgar", do tipo que aceita pagamento de propinas até em banheiros.
Mas eles não descartam que a rede de corrupção pode ir mais alto na escala hierárquica da administração. "A gente nem pensava em chegar aonde já chegou", diz o promotor Roberto Porto, 30. Mas afirma que essa outra corrupção é mais sofisticada e difícil de apurar.
O delegado Romeu Tuma Jr., 38, chega a sugerir a renúncia de Pitta. Ele diz que "iria embora" se estivesse diante de um quadro generalizado de corrupção em órgão sob sua responsabilidade.
Leia a seguir os principais trechos de entrevista concedida pelos quatro na última sexta-feira.
Folha - Até onde essas investigações vão chegar? A rede de corrupção atinge os escalões mais altos da prefeitura?
Roberto Porto -
A gente nem pensava em chegar aonde já chegou.
Naief Saad Neto - Vamos até onde o cansaço permitir. A investigação não tem prazo para terminar. Romeu Tuma Jr. - Há denúncias contra todos os vereadores que têm regional, contra secretários. Mas eu não vou acusar o cara sem provas. Tem que tomar cuidado. Se o cara afirma que o Pitta levava uma nota, é uma coisa. Se tiver prova, nós investigamos.
Folha - Mas o sr. (Tuma) chegou a sugerir a renúncia do prefeito?
Tuma Jr. -
Se eu estivesse ainda dirigindo a seccional sul, se estivesse diante desse quadro e não tivesse no mínimo enxergado isso, eu iria embora. Porque ou eu estaria sendo conivente, ou estaria levando propina também ou eu seria o cara errado para ocupar o cargo.
Não dá para acontecer o que acontece e ninguém ver. Acontece em todos os órgãos da prefeitura. Foi manchete nos jornais em 97.
Folha - É mais difícil pegar a corrupção nos altos escalões?
Porto -
Podemos falar em relação ao Savelli (Alfredo Mário Savelli, ex-secretário de Vias Públicas e Serviços e Obras, que já está denunciado). O esquema é diferente do de Viscome (Vicente Viscome, vereador acusado de extorsão que está foragido). Não se chega ao secretário com a facilidade com que se chega ao vereador. É assim que funciona um esquema organizado.
José Carlos Blat - E a cada escalão que você sobe a dificuldade é maior. Porque aí não é o próprio sujeito que pega o dinheiro. O esquema é mais sofisticado, tem assessores no meio, e os valores movimentados são maiores.
Naief - No caso do Savelli, ele teve de se expor. Participou de reuniões com ambulantes (em que foram feitas denúncias de extorsão), por exemplo. A outros secretários, ninguém tem esse acesso.
Porto - As acusações mais pesadas contra ele (Savelli) não são por ter pego dinheiro de camelô, mas de uma empresa, a W. Sita.
Naief - Mas a empresa fornece barracas para camelôs e isso foi uma forma de ele se expor. Mas normalmente o secretário tem uma barreira, tem a linha de frente dele, ele é intocável. Se comete crime, é mais difícil provar.
Folha - Então a investigação pode ter menos sucesso na hora de apurar denúncias contra pessoas mais "importantes"?
Naief -
Com os de cima, é difícil pegar o rastro. O cara combina o esquema e dá o número da conta no exterior. Quem dá a propina que se vire para depositar lá fora. Já os vereadores são, vamos dizer, vulgares em matéria de corrupção.
Porto - O próprio cara recebe o envelope com dinheiro, no seu gabinete ou em um banheiro público -até no banheiro da Câmara.
Folha - Vocês já estão próximos do momento de ouvir o Pitta?
Porto -
Não tem nem procedimento formal contra ele.
Folha - Mas ouvi-lo sobre o caso como um todo?
Naief -
Eu não vou enfeitar o inquérito trazendo prefeito aqui e não ter o que perguntar para ele.
Folha - Quando começou essa rede de corrupção?
Blat - A rede está funcionando há pelo menos oito ou dez anos. É difícil precisar quando começou. Sempre existiu corrupção nas regionais, no baixo clero. Mas a organização disso vem de algum tempo para cá.
Folha - Dez anos? Então, já havia na gestão Maluf e na de Erundina?
Blat -
Em tese. Em tese.
Folha - Os corruptos de hoje já estavam atuando em 96, em 92?
Naief -
Se você olhar nos anais da imprensa, você vai encontrar corrupção com Maluf prefeito... Mas a coisa ficou muito mais avacalhada de um tempo para cá. Eu nunca tinha ouvido dizer que o prefeito estava refém da Câmara, e a gente ouve isso de um ano para cá. No governo Erundina e no Maluf, a gente não imaginava isso...o prefeito refém da Câmara.
Folha - Existe um momento em que a corrupção subiu de tom?
Blat -
Não se sabe exatamente em que momento. Mas aquela rebelião, que houve no início do governo Pitta, fez com que o esquema -onde existia o esquema- se fortalecesse ainda mais.
O Pitta não tinha alternativa: ou ele entregava as regionais ou ele sofria um processo de impeachment ou uma CPI. Ele acabou cedendo àquelas pressões políticas, ao que tudo indica. Isso serviu para, em alguma medida, legitimar os esquemas.
Folha - A CPI da Câmara ajuda ou atrapalha as investigações?
Tuma Jr. -
O trabalho da CPI tem de ser respeitado. A maioria parece interessada em apurar. O que não dá para entender é que alguns vereadores estão ali querendo fazer papel de juízes. Na primeira sessão, eles viravam para a testemunha e perguntavam: "Mas o senhor foi forçado a dizer isso à polícia?' Mais dez minutos e perguntavam de novo. Isso quem tem de fazer é o juiz de direito. Ele é quem tem de perguntar se alguém apanhou do delegado para dizer isso ou aquilo.
Folha - Há uma crítica que esse inquérito tem muitas provas testemunhais (depoimentos) e poucas documentais. Não há o risco de todo mundo sair livre na Justiça?
Blat - Antigamente a confissão era considerada a rainha das provas. Hoje, todas as provas do inquérito policial têm o mesmo valor. Não há que desprezar a prova testemunhal, neste caso, porque um documento não foi achado.
Tuma Jr. - E a prova testemunhal do caso tem muitos detalhes. Por exemplo, um cara fala que entregava dinheiro para fulano de tal na Câmara. Aí você pergunta, onde é a Câmara? Onde fica o gabinete do vereador? Em que andar? Como você chega lá? Onde fica a ante-sala do vereador? Como era a disposição dos móveis? Qual a cor do carpete? Por acaso essa prova testemunhal não vale?
Folha - Mas na Justiça ele pode dizer que foi induzido, porque no papel o depoimento aparece relatado pelo delegado.
Tuma Jr. -
Estamos gravando os depoimentos em vídeo para dar mais credibilidade. E as perguntas são abertas, ninguém induz as respostas. Além disso, mais provas documentais vão aparecer quando quebrarem sigilos bancários. Aí a gente vai ver a movimentação do dinheiro.
Naief - Quem é que pode contestar hoje a prova testemunhal da Tânia (de Paula, assessora de Viscome)? Ela falou aqui, ela falou para a imprensa, ela falou na CPI.
Folha - Mas daqui a seis meses ela pode dizer que inventou a história. Que tinha brigado com Viscome e inventado tudo.
Blat - Quando uma pessoa diz uma coisa à polícia e outra em juízo, cabe ao juiz dar a valoração a cada um dos depoimentos.
Folha - Não há o risco de um novo Collorgate, em que não conseguiram provar nada criminalmente contra o ex-presidente?
Naief -
Mas ele caiu. E caiu por causa de um Fiat Elba.
Tuma Jr. - Há mais diferenças. Naquele caso havia muito menos testemunhos. Aqui você não tem um cara falando sobre a corrupção. Você tem 500 caras contando a mesma história, e com muitos detalhes.
Naief - Naquele caso havia mais profissionalismo na corrupção. Lá se tratava de pouca gente e de mais valores. Aqui se trata de muita gente e valores menores. Uma média besta, aqui se tem uma média de 80 mil camelôs pagando propina de R$ 40 por semana.
Folha - Advogados de pessoas presas estão dizendo que a polícia está montando um esquema "Doi-Codi'. Prende, isola, chama para conversar no meio da noite...
Tuma Jr. - Não sou eu que prendo, é a Justiça. O juiz, para decretar a prisão, quer ver indícios que justifiquem no inquérito.
Porto - Criticam até a operação Mãos Limpas, da Itália, dizendo que houve abusos. Toda investigação desse porte sofre esse tipo de ataque.
Folha - E os supostos dossiês que existiriam com denúncias contra vocês?
Tuma Jr. -
Eu já estava dizendo desde o início que isso iria acontecer. Já trabalhei e já estudei casos como esses de máfia. É sempre igual. No começo é difícil encontrar provas materiais. Então nós temos provas testemunhais. Aí eles tentam matar essas testemunhas. Se eles não conseguirem matar, eles vão tentar desmoralizar essas testemunhas.
Depois, tentam desmoralizar o núcleo das investigações. Na operação Mãos Limpas, eles mataram o núcleo da investigação. Isso é tática de crime organizado, e eu já dizia que tudo isso iria acontecer, mesmo antes dos atentados contra os camelôs. Mas esses autores de dossiês precisam entender que as investigações não estão sendo feitas pelo Tuma, pelo Blat. Mas pela polícia, pelo Ministério Público. Se eu sair do caso, outro delegado vai continuar as investigações.
Folha - O sr. não acha que deu pontos àqueles que acreditam que o senhor tem algo a temer com a divulgação de um dossiê, ao pedir na quinta-feira férias e afastamento do caso?
Tuma Jr. -
Não, porque não sou covarde. Eu pedi férias porque estou emocionalmente cansado. Nesse estágio você corre o risco de perder o equilíbrio e uma hora dar um tapa em alguém que está depondo. Aí, vou ser acusado de torturador e tudo o que eu fiz vai por água abaixo. Por isso pedi férias. O cansaço pode levar a gente a errar no inquérito.



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