São Paulo, terça-feira, 21 de abril de 2009

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CECILIA GIANNETTI

Retrato do jovem escritor


A última coletiva do escritor resultara em best-seller. Ele manteve 5 jornalistas presos numa suíte de hotel por 72 h

GUILHERME APOLINÁRIO era A Nova Literatura. Estava hospedado pelo verão no apartamento mais espaçoso do prédio mais caro da Vieira Souto, com aluguel pago pela revista "Artiste". Não falava mais com jornalistas porque nenhuma entrevista jamais fizera jus à sua personalidade.
Pelas muitas resenhas favoráveis publicadas sobre seus livros -e por patrocinar a vista perfeita que o autor agora observava quando queria descansar os olhos do computador-, a revista tentava garantir uma exclusiva com Apolinário.
A última entrevista coletiva do escritor resultara em best-seller. Para executar o projeto, mantivera cinco jornalistas presos numa suíte de hotel em Montmartre, em Paris, por 72 horas.
Obrigara-os a anotar cada palavra que diziam e pensavam durante o sequestro, com delineadores Lancôme sobre cadernetas Moleskine. Liberou-os sob a ordem expressa de que não falassem sobre o caso -ou seriam perseguidos e perderiam férias e 13º salário. Embora o escritor tenha apontado uma arma para o grupo, as autoridades nem sequer ficaram sabendo: o segredo editorial do século, a importante experiência realista-literária foi acobertada por todos os veículos -interessadíssimos em transformá-la em um sucesso comercial.
A ideia, que o escritor tivera em meio a um porre de gim em Buenos Aires, havia sido repassada por ele mesmo a alguns veículos, que não explicaram aos seus melhores repórteres exatamente qual era o plano. Enviados a Apolinário, chegaram entusiasmados com gravadores, ignorando qualquer risco, até o autor anunciar que eram reféns.
O jovem escritor girou a pistola, gargalhou com bafo de uísque e os escribas passaram a rabiscar desesperadamente, misturando medo e decepção diante do sujeito que poderia muito bem ser o Maior Escritor Vivo.
Apolinário então reuniu os textos colhidos naquela suíte parisiense, sob a mira de seu revólver, à sua própria visão do episódio em um grosso volume. Jornais, revistas e sites aclamaram a originalidade de seu processo criativo.
Duas reimpressões em seis meses foram o começo da brilhante carreira desse livro, que até hoje não esquenta muito tempo em prateleira de livraria alguma. Os repórteres envolvidos ganharam bônus e cargos por sua discreta, apesar de apavorada, colaboração, além da distinção de terem conhecido pessoalmente Apolinário.
O jovem escritor, sentado em frente ao laptop, agora digita freneticamente, olhos encobertos pela fumaça do cigarro.
Uma das certezas sobre Apolinário, sempre usada para descrevê-lo, é de que pertence à estirpe de Rimbaud: uma energia faiscante que começara a pensar cedo demais e escrevia a todo vapor antes que a juventude o abandonasse.
A origem de tal fama era um press-release enviado antes mesmo do lançamento do livro de estreia do escritor, ou mesmo de sua escritura -um caso nada raro de material para a imprensa produzido graças ao uso de clarividente cara-de-pau.


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