São Paulo, segunda-feira, 21 de junho de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MOACYR SCLIAR

Sonhos eróticos

Acusado de estupro, alemão de 81 anos luta contra teste de ereção. O homem, cuja identidade não foi divulgada, afirmou à corte durante seu julgamento que sofria de diabetes e que não podia ter uma ereção. Uma corte de Justiça havia decidido que uma equipe médica poderia amarrá-lo a uma cama, colocar um anel em seu pênis durante a noite e usar um "erectômetro" para checar se havia alguma ereção. A Corte Constitucional Federal argumentou que tal procedimento violaria os diretos humanos do réu. Mundo Online, 15.jun.2004

Na verdade, ele não lembrava bem o que tinha acontecido, o que, considerando sua idade avançada, não era de estranhar: não raro, esquecia de desligar o gás ou de fechar a porta do apartamento. Contudo, a acusação surpreendeu-o e, de certa forma, deixou-o orgulhoso: então, ele tinha estuprado a jovem e bela Gretchen, sua vizinha? Mas como acontecera aquilo? Sim, os dois haviam estado juntos; ele a convidara para jantar em seu apartamento, oferecera-lhe um excelente vinho. Daí em diante tudo se tornara nebuloso. Recordava-se vagamente de vê-la saindo porta afora, aos gritos mas, por que gritava? Porque ele a havia estuprado, fora a resposta que Gretchen dera no tribunal.
A conselho do advogado, negara tudo, usando inclusive um argumento que qualquer juiz teria de levar em consideração: já não podia ter ereções. Por causa da idade, claro, mas também por causa do diabete de que sofria há muito tempo. O magistrado mirara-o, desconfiado, e dera seu veredicto: teria de se submeter a um teste. Passaria uma noite numa cela, tendo preso ao pênis um sensível instrumento capaz de acusar qualquer ereção.
A perspectiva dessa prova deixou-o em pânico. Enquanto estivesse acordado, poderia controlar seus pensamentos, concentrando-se em coisas anti-luxúria como a morte, o inferno; mas, e se dormisse? E se sonhasse com a bela Gretchen, como vinha acontecendo há muitos meses? Uma ereção poderia então acontecer. Mais: seria praticamente inevitável.
A única solução era um pesadelo. Com a Wicca, por exemplo.
Wicca era o apelido de uma vizinha que ele tivera na infância. Uma velha medonha, a própria imagem da bruxa: nariz adunco, verrugas no queixo, dedos em garra. A Wicca vai te pegar, dizia-lhe a mãe, e ele de imediato se urinava todo. Se a Wicca lhe aparecesse em sonhos, jamais teria uma ereção. O problema era: como sonhar com a Wicca?
Não precisou achar uma resposta: a Suprema Corte liberou-o do teste.
Mas não da Wicca. Vê-a, em sonhos, todas as noites. Ali está a medonha criatura, fazendo-lhe gestos obscenos. Mas o pior não é isso. O pior é que, a cada sonho, ele tem uma ereção: está apaixonado pela Wicca. Faria qualquer coisa para possuí-la; inclusive recorrendo ao estupro. Mesmo que isso lhe custe uma sentença de prisão perpétua. Com a idade que tem, já não serão muitos anos. E, pelo menos, terá realizado seu sonho erótico.


Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.

Texto Anterior: Criador visita Cidade de Deus após 40 anos
Próximo Texto: Consumo: Gerente não consegue cancelar contrato anual com academia
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.