São Paulo, segunda-feira, 21 de junho de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MOACYR SCLIAR

Futebol e concorrência


Fernando não quer mais saber da Copa, de futebol. Para ele, a competição decisiva é a do vestibular


Gabriel Souza, 18 anos, de Brasília, vai aproveitar os momentos de ufanismo durante a Copa para estudar. Ele vai prestar vestibular. "Vários concorrentes vão assistir os jogos, então vou aproveitar", afirma. Folhateen, 14 de junho de 2010

Como o Gabriel Souza, o Fernando também iria fazer vestibular. Como o Gabriel, também não estava muito interessado em acompanhar a Copa. E, como o Gabriel, tinha vários concorrentes, um dos quais incomodava-o particularmente: o Sandro.
Os dois conviviam desde a infância, eram até meio parentes. Mas tratava-se de uma convivência difícil, que envolvia um componente não pequeno de rivalidade. Os dois brigavam para ver quem andava melhor de bicicleta, quem se saía melhor no colégio (eram colegas de turma). E, quando começaram a se interessar por garotas, brigavam para ver quem conseguia mais namoradas.
Em geral, o Fernando, mais inteligente, mais simpático, mais bonito, saia-se melhor nas disputas. Com uma exceção: o futebol, esporte que ambos praticavam, mas com resultados desiguais. O Sandro, excelente atacante, era considerado um verdadeiro prodígio; corria velozmente, driblava de forma espetacular, seu chute era fortíssimo. Sandro, ao contrário, não passava de um jogador medíocre. Era goleiro, mas volta e meia tomava frangos vergonhosos, para deleite do rival.
O pior, contudo, acontecia quando os times de ambos se enfrentavam, o que volta e meia acontecia durante o campeonato do colégio. Lá estava o Fernando, como goleiro, preocupado em não fazer feio; de repente o Sandro apossava-se da bola, driblava meia dúzia de adversários e num instante estava na frente do Sandro, pronto para chutar. O sorriso sádico que então exibia era uma coisa que mortificava, e aterrorizava, o pobre Fernando. Não havia nada que ele pudesse fazer, nada; no instante seguinte, Sandro estava marcando o gol com a maior displiscência e tranquilidade.
O cúmulo da perversidade ocorreu quando, na final do campeonato, o time de Fernando já perdendo por cinco a zero, Sandro veio vindo, veio vindo, ficou na frente do concorrente e não marcou. Não marcou porque simplesmente não quis marcar, não precisava: todos os outros gols haviam sido de sua autoria. De modo que, num gesto de supremo desprezo, chutou para fora.
Agora, o vestibular se aproxima. Sandro, fanático pelo esporte, não consegue se concentrar nos estudos; passa o dia na Internet, na TV, acompanha todos os times, todos os jogos. Fernando, não. Fernando estuda sem parar, com dedicação.
Não quer saber da Copa, aliás não quer saber mais de futebol, que só lhe deu aborrecimentos, e que considera coisa de garoto sem objetivos na vida. Para ele, a competição decisiva é a do vestibular. Decisiva porque nela, assim o espera, derrotará o rival, de forma completa e definitiva. Vê-se, não como goleiro, mas, sim, como atacante, diante do Sandro que ali está, guarnecendo a meta adversária. Os dois frente a frente, ele desfere um potente e arrasador petardo. Marca o gol, claro, para delícia da torcida e para sua própria e definitiva glória: acabou de vencer, ou assim acha, o campeonato da vida.

MOACYR SCLIAR escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.

moacyr.scliar@uol.com.br


Texto Anterior: Aluno deve ficar atento ao nível das faculdades
Próximo Texto: A Cidade é sua
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.