São Paulo, quarta-feira, 21 de agosto de 2002

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URBANIDADE

Museu da antidecoração

Vincenzo Scarpellini
NA RUA BENJAMIN CONSTANT Os livros duram mais que os leitores. Mas, ao morrer, os leitores viram pó e, nessa nova forma, têm chance de voltar aos livros. Sobretudo aos mais antigos. Sobretudo nos sebos, que, silenciosamente, se multiplicam no centro. Com seu nobre pó, eles são uma alternativa à internet, pois oferecem livre navegação nos assuntos mais variados em ambiente multilíngue (VINCENZO SCARPELLINI)

GILBERTO DIMENSTEIN
COLUNISTA DA FOLHA

A artista plástica Vera Fraga Leslie vivia numa aprazível casa de frente para o mar, em Niterói. Estava acostumada ao ritmo de província: velhos na calçada jogando conversa fora, crianças brincando nas ruas e passarinhos adornando as árvores. Brisa, cheiro de mar, pôr-do-sol. Obrigada a acompanhar o marido, mudou-se, há dez anos, para um apartamento em São Paulo, ao lado de uma barulhenta obra. "Era a própria visão do inferno", lembra.
Ficava especialmente incomodada com as montanhas de lixo produzidas pela cidade, a começar das obras em torno do prédio em que morava. Nesse anos, mais do que conviver com o lixo, aprendeu a ver beleza nele. Transformou caixas de ovos, garrafas plásticas, tampinhas, barras de ferro ou retalhos de tecidos em vasos, lustres, mesas e quadros. Muitas das peças são brincadeiras inspiradas nos objetos de desejo da classe média paulistana.
Fez da reciclagem elemento do que batizou de antidecoração, uma idéia solitária, marginal, numa cidade tomada pelo culto das grifes. "O sofá não precisa mudar de cor de acordo com aquilo que diz a moda", ensina. A proposta é simples: quem determina o que é belo não é o decorador nem a revista de moda, mas a criatividade de cada um, num jogo de composição de espaços e de objetos, muitos deles reaproveitados.
Na guerra de guerrilha contra o império das grifes e o predomínio dos decoradores como os detentores do "bom gosto", Vera escreveu um livro -intitulado "Lugar Comum"- para difundir a idéia de que a beleza está na identidade individual. E resolveu fazer de sua própria casa um misto de museu com uma espécie de laboratório da antidecoração.
Na semana passada, a artista plástica decidiu abrir sua casa-museu à visitação pública virtual, colocando-a na internet (www.lugarcomum.art.br). "O importante é brincar com todas as regras e descongelar os preconceitos, seguindo a imaginação", aconselha. "É indispensável uma boa dose de humor."
Da pacata e discreta casa em frente à praia à sua casa atual, com elementos do caos urbano, Vera aprendeu a gostar do "inferno": "A capacidade de brincar com todas as regras é minha melhor lição de São Paulo".

E-mail - gdimen@uol.com.br


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