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São Paulo, domingo, 21 de setembro de 2003

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DANUZA LEÃO

Quantos somos?

Quantas personalidades nós temos? Duas? Não, muitas mais.
Se você conhece um pai de família austero, que faz discursos em casa com opiniões as mais sérias sobre a moral e os bons costumes em geral, diante de quem os filhos não podem nem dizer uma palavra mais forte, desconfie: talvez as coisas não sejam tão simples assim.
Pode acontecer de um dia você cruzar com ele na praia, num botequim ou fantasiado de mulher num bloco de Carnaval -alegre, desbocado, a verdadeira alegria do grupo. Hipocrisia? Não; é que somos vários, e talvez a grande dificuldade da vida seja juntar esses vários num só.
Você também é assim, claro. Quando vai almoçar na casa de sua sogra, escolhe com cuidado os assuntos e bebe pouco, por precaução; ou por acaso se comporta como quando está com a turma do futebol, dizendo baixarias sobre as mulheres? E diante de seu patrão diz o que acha do governo do PT, sabendo que está indo na direção oposta à opinião dele?
As mulheres, essas são múltiplas: mudam de comportamento facilmente, dependendo das circunstâncias, e por isso têm tantas amigas, todas diferentes umas das outras. Uma para quando está apaixonada, outra para quando está se desapaixonando e achando graça em outro, outra para quando está em depressão, outra para falar de doença, outra para falar de filho. E aquela de fé para soltar a imaginação e poder dizer que não aguenta mais ver a cara do marido, que gostaria mesmo é de passar duas horas num hotel do cais do porto nos braços de um marinheiro sueco com uma sereia tatuada no braço (e no dia seguinte chegar chorando porque está desconfiada de que o marido tem um caso).
Será que quem é capaz de ter tantas personalidades é porque no fundo não tem nenhuma ou, pelo contrário, é o que se chama uma personalidade rica? Ouve-se falar que uma pessoa deve ser sempre uma só, que quem é muitas é porque tem uma persona fragmentada, mas alguém que é sempre a mesma não é uma monotonia sem fim? E quem sabe o que se passa no fundo do seu coração, de verdade?
Tem gente que tem certezas sobre tudo, e duvido que seja possível achar graça nelas por muito tempo. Afinal, o que queremos é alguém que nos surpreenda. Quantas pessoas você conhece capazes disso? Poucas, aposto.
Quem pretende ter uma relação estável até o fim dos seus dias costuma procurar uma dessas pessoas que parecem equilibradas emocionalmente. Mas é bom estar preparado para um dia saber que ela tem um outro lado que é o contrário do que sempre pareceu que era (e aí pode até ser ótimo).
Conhecer o outro (ou os outros) lado de uma pessoa costuma acontecer depois que ela morre, quando se vai mexer nos papéis e se encontram bilhetes, papéis, cartas apaixonadas, essas coisas. Aí ficamos cismando: como foi possível viver tanto tempo perto de alguém sem saber quem ela era?
É assim mesmo: pense se alguém sabe quem você é, de verdade. Não que você minta ou esconda coisas; só que é tão perigoso tentar conhecer a nós mesmos e do que seríamos capazes que chega a dar medo.
E assim vamos pela vida, nos casando, tendo filhos, tendo amigos, sem que ninguém tenha a menor idéia de quem é quem.
O que talvez seja melhor: sabendo, a vida talvez ficasse muito difícil de ser vivida.


E-mail - danuza.leao@uol.com.br


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