São Paulo, segunda-feira, 21 de outubro de 2002

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MOACYR SCLIAR

Ele (ex-ela) e ela (ex-ele)

 Casal muda de sexo na Hungria. Uma equipe de cirurgiões húngaros ajudou um casal a trocar de sexo, fazendo do homem uma mulher e da mulher um homem.
Ciência Online, 16.out.2002

A operação foi um êxito e, quando acordaram da anestesia, ele era ela e ela era ele. Miraram-se com certa surpresa, pois ele sempre tinha pensado nela como ela e ela sempre tinha pensado nele como ele, ainda que em suas respectivas vidas sexuais ela tivesse desempenhado um papel mais próximo ao que a ele caberia se ele, claro, não se sentisse mais próximo ao perfil que ela, supostamente, deveria ter. Mas, depois de muito tempo de engano, haviam optado pela verdade. Ele se havia assumido como ela, ela se havia assumido como ele, daí a cirurgia. Agora se olhavam surpresos e encantados. Sim, poderiam continuar a viver juntos, ele, ex-ela, e ela, ex-ele. E seriam, pelo menos o esperavam, felizes para sempre, como naquelas histórias do cinema em que ele é ele mesmo e ela é ela mesma.
Mas não seria o caso. Quando tiveram alta do hospital e voltaram para casa, começaram a enfrentar problemas inesperados.
A roupa, por exemplo. Tinham decidido que, simplesmente, trocariam de guarda-roupa; haviam gasto muito dinheiro com médicos e hospital e agora precisavam economizar. Mas descobriram que não era tão simples assim. Em primeiro lugar, e ainda que tivessem passado por transes semelhantes, seus corpos eram inevitavelmente diferentes e as roupas também. Quando ele, ex-ela, foi vestir um terno, constatou que o casaco lhe dançava no corpo. Por sua vez, ela, ex-ele, apertada num vestido, não gostou nada do que estava vendo. Você não tem dignidade para usar esse terno, disse, com irritação, e acrescentou, em tom de deboche:
-Além disso, o nó da gravata está errado.
Ele, ex-ela, retrucou com irritação:
-Pode ser. Mas não sei para que usar gravata. Isso não passa de um símbolo fálico, de uma forma de mostrar quem tem o poder.
Ela, ex-ele, riu, irônica:
-A mim você não pode se queixar. Não esqueça que abri mão da minha condição masculina. E da gravata também.
-Espero que você abra mão desse vestido, respondeu ele, ex-ela. -Está ridículo em você.
Essa foi a primeira de muitas brigas. Outras se seguiram; ele, ex-ela, exigiu que trocassem de lugar na cama. Ela, ex-ele, reclamou que estava trabalhando demais e que caberia a ele, ex-ela, assumir o papel de homem da casa.
Estão pensando em voltar aos médicos que os atenderam para reverter tudo. A única coisa que os detém é a perturbadora antecipação de uma identidade, por assim dizer, telescopada, em que elementos masculinos e femininos estejam uns dentro dos outros, como aqueles tubos dos antigos telescópios. Ser ele, ex-ela, e ser ela, ex-ele, já é complicado. Mas ser ela, ex-ele e ex-ex-ela, e ser ela, ex-ele, ex-ex-ex-ela, deve ser mais complicado ainda.


O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em reportagens publicadas no jornal.


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