|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Comunidade rural mantém tradições japonesas em SP
61 japoneses abdicam de dinheiro, conforto e casa própria em nome do coletivo
Associação de Yuba produz quase 60% do que consome: frutas, verduras e até o shoyo, indispensável na milenar culinária japonesa
ROBERTO DE OLIVEIRA
DA REVISTA DA FOLHA
Existe um lugar onde o Brasil
faz fronteira com o Japão, no
interior de São Paulo. Uma placa na saída da rodovia Marechal Rondon avisa: "Associação
Comunidade Yuba". Cerca de
400 m de pista de terra e lá está
ela. À primeira vista, parece
uma simples fazenda nos arredores de Mirandópolis (cerca
de 600 km da capital paulista).
Às vésperas do centenário da
imigração japonesa no país, a
comunidade preserva os costumes milenares e um jeito peculiar de tocar a vida no campo.
Às 18h, uma senhora sai da
cozinha, solta palavras incompreensíveis e saca um berrante
para avisar a todos do jantar. Os
trabalhadores vão chegando da
roça e sentam-se em longos
bancos do refeitório. Lembra
uma grande família. Um minuto de silêncio antes de comer.
Agradecem a Deus, a Jesus,
mas há espaço para Buda.
Ao lado dos talheres, hashis,
aqueles pauzinhos. Não se ouve
só uma palavra em português.
A língua oficial é o japonês, como é visto no cardápio. Não há
refrigerante, só chá gelado.
À noite, o refeitório, repleto
de ideogramas, vira uma sala de
coral e piano. A poucos passos
dali, a música clássica embala
aulas de balé. Na casa ao lado,
um agricultor marcado pelo sol
toca trompete, enquanto a vizinha, ainda cheirando a alho,
pinta um quadro.
Na biblioteca, adolescentes
se debruçam sobre os livros na
aula de japonês. As crianças só
são alfabetizadas em português
após os seis anos -pegam ônibus até as escolas da região.
O português entra em cena
quando a comunidade recebe
brasileiros ou nos momentos
de piada entre os mais jovens.
"Fica mais engraçado. Em japonês, tira a graça. É uma língua
séria demais", acha Naeko Yuba, 42. De dia, ela colhe goiabas,
à noite, solta o gogó no coral.
Yuba mantém os traços da
herança oriental trazida pelo
fundador, Isamu Yuba (1906-1976), em 1935. Nenhum de
seus 61 moradores goza de regalias ou privilégios. Nem mesmo o presidente da associação.
É livre a escolha do trabalho.
Os moradores exercem seus
ofícios em rodízio para garantir
que todos façam de tudo. Só
contratam gente de fora na
época mais intensa da colheita.
Detalhes curiosos: ninguém
tem salário e não há transações
locais com dinheiro. Se alguém
precisa de um par novo de tênis
para jogar beisebol, o esporte
favorito da comunidade, leva o
assunto à administração.
Shoyo feito em casa
Para manter a comunidade,
há um gasto mensal, de R$ 10
mil a R$ 15 mil, para telefone,
energia, comida e manutenção
do maquinário. Compram-se
produtos como arroz, feijão,
óleo, sabonete e café.
Cerca de 60% do que se consome é feito lá: frutas, verduras
e até mesmo o shoyo. Há um
poço artesiano para abastecer a
comunidade -e o ofurô.
Yuba é uma comunidade,
mas, no papel, se transforma
em uma associação, com diretoria eleita pelos moradores. O
quadro administrativo surgiu
para controlar a entrada de recursos, obtidos com a venda de
frutas e legumes, e os gastos.
"Temos todo interesse no lucro e estamos lucrando. Só que
o dinheiro ainda só dá para pagar contas", diz o presidente da
associação, Tsuneo Yuba, 53.
Às vésperas da mudança, em
2003, Yuba, a fazenda, quase
foi à segunda falência.
Os administradores alteraram a estratégia de venda. Antes, os alimentos passavam por
atravessadores, agora, vão direto para os pontos-de-venda, como supermercados.
Se a dificuldade financeira
está sendo superada, Yuba enfrenta outro obstáculo no caminho: o futuro. "Acho natural
que a comunidade, um dia, acabe. Esse tipo de sociedade praticamente não existe mais num
mundo capitalista como o de
hoje", acha Tsuneo.
Gaijin
A sobrevivência está nas
mãos dos jovens. Mas há um
empecilho na hora de gerar novas famílias: a maioria tem algum grau de parentesco entre
si. Cerca de 30% são da família
Yuba (em japonês, lugar do arco). E nem todos se vêem trocando alianças com um gaijin
(estrangeiro). "Os rapazes da
cidade são desinteressantes e
infantis", acha Mie Yuba, 19.
Seu irmão, Daigo, 23, diz não
se importar se a garota for japonesa ou brasileira, mas faz
questão de frisar: "Os japoneses ajudam uns aos outros e valorizam sua cultura. Para mim,
isso é muito importante".
Leia mais da comunidade em
www.uol.com.br/revista
Texto Anterior: Folha lança pôsteres com obras do Masp Próximo Texto: Gilberto Dimenstein: Droga de elite Índice
|