São Paulo, terça-feira, 21 de outubro de 2008

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CECILIA GIANNETTI

Paraíso em cativeiro


Meu auto-seqüestro é um crime passional, recurso visando à preservação de mim por mim mesma

AUTO-SEQÜESTREI-ME e estou me mantendo refém numa ilha -mais precisamente, nesta manhã, num pedalinho em formato de cisne dourado, próximo a um morro e pedregulhos de diferentes tamanhos; no que, reconheço, há certo elemento de ridículo. No entanto, o veículo de fuga que usei numa primeira etapa era imponente: a barca Vital Brasil. Já de início, mais vantajoso do que se tivesse tomado um avião. Não enfrentei filas, atrasos e paguei pela passagem o equivalente a dois bilhetes de metrô, sem me juntar à superpopulação de sardinhas enlatadas, que é como o sistema metroviário transporta hoje seus passageiros no Rio de Janeiro.
A barcaça deixou espumando um rastro de água escura e, atrás da poluição da baía, a bizarria urbana que Fernando Gabeira ou Eduardo Paes herdará, onde a média diária de homicídios é de 17. Sem contar os feridos, caso da mulher que uma bala perdida encontrou no subúrbio de Higienópolis, na semana passada, perto do Dia dos Professores; ela lecionava em uma escola municipal das redondezas. Nos confrontos entre polícia e criminosos, atira-se também contra estudantes, rotulados imprópria e genericamente de traficantes, e contra traficantes propriamente ditos. É considerado "comum".
Fico sabendo das notícias pelo aparelho de TV da recepção de uma pousada. São causalidades a que se possa tornar habituado? Tô fora. Mas parece que a turma lá na cidade já não acha extraordinário mais nada disso. Nem o tiroteio em uma das áreas mais movimentadas, a Central, na hora do rush; nem a morte do jornaleiro em sua banca na Candelária, por um assaltante; nem de autoridades, como o diretor do presídio de segurança máxima Bangu 3, abatido pelo tráfico à luz do dia, alvo de mais de 60 tiros na avenida Brasil. Nem o fato de tudo ter ocorrido na mesma semana.
Meu auto-seqüestro é, portanto, um crime passional, recurso desesperado visando à preservação de mim por mim mesma. Não sem uma pontada de culpa, por ter me escondido da minha própria cidade. A atenuante é que fugi do Rio sem sair do Rio. Paquetá é uma ilhota de "Lost" carioca, perdida no tempo e no espaço. Mas sem vilões feito o Benjamin Linus, ou a misteriosa fumaça preta fatal e os ursos polares do seriado norte-americano. O maior terror é quando cai a internet na única Lan house local. Nem assim me apavoro mais. Cheguei há poucos dias e, por enquanto, resolvo qualquer crise à base de risoto farto de camarão e cerveja. Mesmo a abstinência aguda de conexão banda larga parece contornável. A frase de adesivo de carro define o estilo de vida paquetaense: "Tá nervoso? Vai pescar". Aliás, aqui não passa carro nem ônibus nem moto. Caminhões, só do o lixo e o do gás. O transporte da população é feito em bicicletas próprias ou alugadas, os "eco-táxis", versão ciclística das charretes, com um sujeito que pedala puxando a cadeirinha, coberta por toldo, onde viaja o passageiro.
Tudo muito diferente de balneários badalados da região dos Lagos. Turistas, há poucos na semana, só o suficiente pra dar ao pessoal que vive de conduzir charretes algo que fazer. Quase não se nota sua presença, tirando fotos e almoçando peixe frito. Sábado e domingo, a menos que uma horda improvável decida invadir a ilha pra jogar o tradicional bingo no Iate Clube, a situação permanece tranqüila. E eu também; até que algum compromisso me force a pagar o resgate da volta.


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