São Paulo, quinta-feira, 21 de outubro de 2010

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QG dos sem-teto

Cerca de 1.200 pessoas precisam seguir regras em prédio invadido, como horário para comer e chegar

ELIANE TRINDADE
DE SÃO PAULO

Todo dia eles fazem tudo sempre igual no número 905 da Ipiranga, quase esquina com a São João. Há 17 dias, cerca de 1.200 sem-teto fizeram do endereço, a dois passos do cruzamento cantado por Caetano Veloso em "Sampa", quartel-general.
Desde então, a rotina ali é militar. A rigidez começa nos horários de refeições, entrada e saída. "Se não botar ordem, quem bota é a polícia", diz Maria do Planalto, 52, general do movimento.
Os que lá estão vieram de duas invasões na zona leste, de onde foram retirados.
Ganhavam R$ 300 mensais do programa emergencial da Secretaria de Habitação para cobrir despesas de aluguel, mas muitos deixaram de receber em setembro e invadiram este e outros três prédios no centro.
Agora, obedecem a ordens escritas em cartazes afixados nas paredes descascadas do prédio imponente de 15 andares, que nasceu como hotel e abrigou um bingo desativado há mais de cinco anos.
Às 4h, um pelotão avançado está a postos. No comando da equipe que vai ao mercadão recolher sobras, está Rita Almeida Silva, 52. "Só passa fome em São Paulo quem tem preguiça", diz ela.
Na última terça, Rita exibia a farta mesa de alimentos que iriam para o lixo se não tivessem sido coletados por ela e 18 colegas. Mamão e melancia estão no menu do café, das 7h às 8h40. Terminada a fila, começa o trabalho das cozinheiras para dar conta dos 35 kg de arroz, 20 kg de macarrão e 10 kg de feijão do almoço.
"O rango daqui é melhor do que a lavagem servida na firma", diz Divino Cabral, 47, motorista, que ganhou o apelido de "bombeiro". Descobriu a cisterna do prédio e resolveu temporariamente o abastecimento de água.
Ganhou crédito para permanecer, mesmo tendo quebrado uma das regras. Chegou embriagado. "Ultrapassei os limites, mas sou trabalhador e mereço ficar", justificou-se. Ficou, mas "paga os pecados" como ocupante solitário do 14º andar.
A superlotação nos andares mais baixos é evidente. Os líderes e postos-chaves ficam no térreo, mezanino e primeiro andar.

FAXINÃO
É constante o sobe e desce de baldes de água pela escadaria em caracol. A limpeza chama atenção: 15 toneladas de entulho foram recolhidas.
"Essa é a minha suíte presidencial", brinca Denise de Souza, 36, que fez do apartamento 405 do antigo Hotel Ipiranga sua "casa".
Dentre os 112 quartos e suítes, o espaço personalizado pela costureira desempregada pode ser elevado à categoria luxo. Numa mesa lateral repousa fogão que aquece água para banhos de caneca na banheira. Um vaso enfeita a mesinha improvisada.
Ocupante da suíte 705, a faxineira Anecielma Lima, 28, mostra as roupas folgadas, graças ao vaivém no edifício sem elevador. Seus braços e pernas começam a ficar torneados pelo "levantamento" de garrafas e baldes.

SEM SEXO
Como as habitações são coletivas, sexo é proibido. "Meu namorado está de castigo", diz Edna Freire, 21. Sobra tempo para a vaidade. Em um caixote/penteadeira, as meninas do 101 espalham xampu e esmalte.
Rezar pode. Antes do almoço, um grupo de dez pessoas se reúne para ler a Bíblia. Leem o Salmo 125: "Os que confiam no senhor são como o monte de Sião que não se abala". Entoam hinos com fervor de quem espera a casa prometida.
Com luz apenas nos corredores e áreas comuns, a tevê é liberada nas transmissões de jogos, às quartas. O aparelho também é ligado à tarde para entreter as 297 crianças.
Não dá para precisar quantas pessoas, de fato, vivem hoje no prédio invadido.
O "censo" da Frente de Luta pela Moradia é feito a partir de nomes afixados nas portas de cada suíte ocupada. Na 701, a lista é de 29 pessoas. "Tem muita gente que só passa aqui, toma café e vai embora", diz Márcia Lima, 41, grávida de oito meses de gêmeos, que não arreda o pé dali desde o dia 4.
Cláudia Roberta, 40, também não deixou a trincheira, mas sonha em garantir sua moradia definitiva na zona leste. "Sinceramente, não gosto do centro, prefiro a periferia", diz. "Aqui tem muita sujeira, nóia e bandido."
A presença dos invasores provoca reações. "Vocês não têm vergonha?", indagou um senhor que desceu do seu Corolla para protestar contra a ocupação.
"É preconceito de quem acha que pobre só pode vir ao centro para trabalhar, não para morar", rebate Maria do Planalto.
Às 22h, o toque de recolher: a portaria se fecha. É hora de apagar as velas.


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