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COMENTÁRIO
Carta aberta aos amigos da rua Capri
RAUL BORGES GUIMARÃES
ESPECIAL PARA A FOLHA
CAROS AMIGOS da rua
Capri, assim como
muitos paulistanos, tenho acompanhado apreensivo
os trabalhos de resgate na cratera que se abriu próximo ao Pinheiros. Quantas serão as vítimas? Os moradores conseguirão retornar às suas casas?
A rua Capri é um ponto da cidade de São de Paulo de encontro de vários tempos. Tempo
lento da vida de quem mora ali
há décadas, desde a época que o
rio Pinheiros era o fim da cidade e suas casas, um lugar numa
curva do rio. Tempo cíclico da
natureza modificada pelo homem, que aterrou a curva do rio
e sobre a antiga calha fluvial
construiu a rua. Tempo rápido
da metrópole que não pára e
precisa transportar milhões de
passageiros por dia.
A cidade do tempo rápido
rasgou o chão e tentou engolir a
cidade do tempo lento. Mas se a
obra tem pressa, ela não pode
prosseguir. A ferida aberta no
chão da cidade impõe o ritmo
do tempo lento, daqueles que
percorrem ruas a pé e conhecem os seus vizinhos. E é desta
parte da cidade que são contabilizadas as vítimas e as famílias sem destino certo.
Talvez seja por isto que a área
atraia tantos curiosos, que se
penduram em árvores ou tiram
fotos dos homens trabalhando.
O cidadão se espelha na matéria crua e nua da cidade.
De minha parte, fui tomado
por uma sensação estranha na
medida em que o lugar foi sendo apropriado pela mídia e
transformado num fato jornalístico de grande repercussão.
É que a rua Capri pertenceu
ao meu cotidiano por anos,
quando na década de 1980 trabalhei numa escola vizinha de
dona Lourdes (aquela senhora
que foi desalojada da casa onde
vive há mais de 60 anos). Conheci essa simpática paulistana
quando o colégio mudou-se para o final da rua Capri, na divisa
de muro de sua residência.
Na escola nem havia ainda a
cozinha e os alunos não haviam
chegado, mas lá já estava a dona
Lourdes, com seu sorriso hospitaleiro, oferecendo uma garrafa térmica com seu delicioso
café para os funcionários que
organizavam o colégio. Impressionante como a escola foi acolhida pela comunidade. Dona
Lourdes preencheu uma ficha
de emprego e foi contratada como inspetora de alunos. Foi
nesta função que ela veio a se
aposentar há alguns anos.
O Bar do Seu Mané transformou-se num ponto de encontro de professores e o pastel da
feira deixou saudades em muitos ex-alunos.
Freqüentemente, convidava
a dona Lourdes para contar histórias de quando era criança
para os alunos da quinta série.
Lembro-me dela explicando
como ocorreu a transformação
nos arredores da escola.
No terreno do colégio havia
uma chácara onde uma família
plantava batatas. A Capri não
existia e no local passava o rio,
espécie de piscina natural das
crianças mais pobres, que não
podiam freqüentar o Clube de
Regatas Pinheiros. Qualquer
criança daquela época sabia
que na várzea do rio não era lugar para fazer buracos, principalmente em dias de chuva,
quando o rio serpenteava pelo
seu caminho natural.
Depois vieram as grandes
obras de engenharia, prenúncio da chegada do tempo rápido: a retificação do canal do rio;
a chegada dos trilhos da ferrovia; o terminal de ônibus, os
grandes edifícios.
É claro que a linha amarela é
importante. Vai transportar
900 mil passageiros por dia.
Mas dona Lourdes e seus simpáticos vizinhos fazem parte de
uma memória viva da cidade
que não quer se calar e merece
mais respeito.
Cora Coralina lutou a vida inteira para preservar suas relações com os vizinhos que, segundo ela, são os parentes mais
próximos. Foi tão importante
seu exemplo que Goiás instituiu o dia do vizinho para homenagear a sua grande poetisa.
Estão tentando achar algum
culpado pelo acidente. Excesso
de chuvas? Falha no sistema de
engenharia? Mas o principal
problema em São Paulo é a falta
que faz a gente olhar mais para
o vizinho, deixando aberta a esperança de um espaço cotidiano mais solidário e fraterno.
Neste momento de dor e tristeza, quero mandar um caloroso
abraço para dona Lourdes e
nossos amigos da rua Capri.
RAUL BORGES GUIMARÃES é professor do Departamento de Geografia da Unesp de Presidente Prudente
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