São Paulo, segunda-feira, 22 de janeiro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

COMENTÁRIO

Carta aberta aos amigos da rua Capri

RAUL BORGES GUIMARÃES
ESPECIAL PARA A FOLHA

CAROS AMIGOS da rua Capri, assim como muitos paulistanos, tenho acompanhado apreensivo os trabalhos de resgate na cratera que se abriu próximo ao Pinheiros. Quantas serão as vítimas? Os moradores conseguirão retornar às suas casas?
A rua Capri é um ponto da cidade de São de Paulo de encontro de vários tempos. Tempo lento da vida de quem mora ali há décadas, desde a época que o rio Pinheiros era o fim da cidade e suas casas, um lugar numa curva do rio. Tempo cíclico da natureza modificada pelo homem, que aterrou a curva do rio e sobre a antiga calha fluvial construiu a rua. Tempo rápido da metrópole que não pára e precisa transportar milhões de passageiros por dia.
A cidade do tempo rápido rasgou o chão e tentou engolir a cidade do tempo lento. Mas se a obra tem pressa, ela não pode prosseguir. A ferida aberta no chão da cidade impõe o ritmo do tempo lento, daqueles que percorrem ruas a pé e conhecem os seus vizinhos. E é desta parte da cidade que são contabilizadas as vítimas e as famílias sem destino certo.
Talvez seja por isto que a área atraia tantos curiosos, que se penduram em árvores ou tiram fotos dos homens trabalhando.
O cidadão se espelha na matéria crua e nua da cidade.
De minha parte, fui tomado por uma sensação estranha na medida em que o lugar foi sendo apropriado pela mídia e transformado num fato jornalístico de grande repercussão.
É que a rua Capri pertenceu ao meu cotidiano por anos, quando na década de 1980 trabalhei numa escola vizinha de dona Lourdes (aquela senhora que foi desalojada da casa onde vive há mais de 60 anos). Conheci essa simpática paulistana quando o colégio mudou-se para o final da rua Capri, na divisa de muro de sua residência.
Na escola nem havia ainda a cozinha e os alunos não haviam chegado, mas lá já estava a dona Lourdes, com seu sorriso hospitaleiro, oferecendo uma garrafa térmica com seu delicioso café para os funcionários que organizavam o colégio. Impressionante como a escola foi acolhida pela comunidade. Dona Lourdes preencheu uma ficha de emprego e foi contratada como inspetora de alunos. Foi nesta função que ela veio a se aposentar há alguns anos.
O Bar do Seu Mané transformou-se num ponto de encontro de professores e o pastel da feira deixou saudades em muitos ex-alunos. Freqüentemente, convidava a dona Lourdes para contar histórias de quando era criança para os alunos da quinta série.
Lembro-me dela explicando como ocorreu a transformação nos arredores da escola.
No terreno do colégio havia uma chácara onde uma família plantava batatas. A Capri não existia e no local passava o rio, espécie de piscina natural das crianças mais pobres, que não podiam freqüentar o Clube de Regatas Pinheiros. Qualquer criança daquela época sabia que na várzea do rio não era lugar para fazer buracos, principalmente em dias de chuva, quando o rio serpenteava pelo seu caminho natural.
Depois vieram as grandes obras de engenharia, prenúncio da chegada do tempo rápido: a retificação do canal do rio; a chegada dos trilhos da ferrovia; o terminal de ônibus, os grandes edifícios.
É claro que a linha amarela é importante. Vai transportar 900 mil passageiros por dia.
Mas dona Lourdes e seus simpáticos vizinhos fazem parte de uma memória viva da cidade que não quer se calar e merece mais respeito.
Cora Coralina lutou a vida inteira para preservar suas relações com os vizinhos que, segundo ela, são os parentes mais próximos. Foi tão importante seu exemplo que Goiás instituiu o dia do vizinho para homenagear a sua grande poetisa.
Estão tentando achar algum culpado pelo acidente. Excesso de chuvas? Falha no sistema de engenharia? Mas o principal problema em São Paulo é a falta que faz a gente olhar mais para o vizinho, deixando aberta a esperança de um espaço cotidiano mais solidário e fraterno.
Neste momento de dor e tristeza, quero mandar um caloroso abraço para dona Lourdes e nossos amigos da rua Capri.


RAUL BORGES GUIMARÃES é professor do Departamento de Geografia da Unesp de Presidente Prudente

Texto Anterior: Números da cratera
Próximo Texto: Moacyr Scliar: Sobre cartas e crateras
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.