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MOACYR SCLIAR
Sobre cartas e crateras
Ela deu-se conta do erro que cometera: de fato, as cartas eram muito importantes para ele, sempre falava nelas
O que você salvaria se sua casa fosse desabar? Em situações emergenciais o
paulistano geralmente tenta salvar documentos, dinheiro, jóias, roupas e fotos.
A vida é sempre o valor maior e sua manutenção, motivo de alívio. Diz Andreza
de Souza, 23, moradora da rua Capri: "Eu
queria pegar umas calcinhas, mas fiquei
com vergonha do funcionário da Defesa
Civil que me acompanhava. Ele me deu
somente dois minutos, e só tinha tempo
para levar minha escova de dentes, um
edredom, duas calças jeans e uma blusa".
Cotidiano, 21 de janeiro
-O que é que você levaria, se
tivesse de abandonar sua
casa às pressas? -perguntou o rapaz à namorada, depois
de ler-lhe a notícia publicada na
Folha.
Ela pensou um pouco.
-Acho que levaria a mesma coisa
que esta moça: escova de dentes,
edredom, calças jeans, blusa... E
calcinha: eu não teria vergonha do
funcionário. Prefiro ficar sem a
vergonha do que sem as calcinhas.
-Só isso? -disse ele. -Só isso, você levaria?
Ela pensou um pouco:
-Não. Você tem razão, estas coisas são importantes, mas não suficientes. Eu pegaria meus documentos: a identidade, a carteira de
trabalho... Pegaria também a única
jóia que tenho, aquele colar que
mamãe me deixou. Seria o caso
de apanhar alguma grana, claro,
mas dinheiro você sabe que eu não
tenho, mesmo porque estou
desempregada.
Ele ficou algum tempo em silêncio, e aí voltou à carga. E desta
vez sua voz soava estranha, hostil
mesmo:
-É isso, então? É isso que você levaria, se a sua casa estivesse a ponto de desabar?
Ela se deu conta de que alguma
coisa estava incomodando o namorado, alguma coisa séria. Já pressentindo um bate-boca, perguntou
em que, afinal, ele estava pensando. O que ela deveria ter mencionado, que não mencionara? O que havia esquecido?
-As cartas -disse ele, e a irritação agora transparecia em seu tom
de voz. As cartas de amor que lhe
escrevi.
Ela deu-se conta do erro que cometera: de fato, as cartas eram
muito importantes para ele, sempre falava nelas. Mas também ela
agora estava irritada, e disposta a
partir para o confronto.
-Verdade, esqueci as cartas. Mas
tenho de lhe dizer uma coisa: não
sei onde estão essas cartas, simplesmente não sei. Você me conhece, sabe que sou desorganizada.
Em dois minutos, não encontraria
carta alguma. Provavelmente a casa desabaria, e eu morreria procurando. Você não havia de querer isso, certo? Você não quereria que eu
morresse procurando essas suas
cartas.
Ele agora estava pálido, pálido de
ódio.
-Vou lhe dizer uma coisa -falou,
por fim. -Se você não encontra minhas cartas, a razão é muito simples: você não me ama mais. E se
você não me ama, a mim pouco importa o que iria lhe acontecer.
Levantou-se, e foi embora. Ela ficou pensando: há muitas crateras
na vida, mas poucas são tão profundas quanto aquela em que o
amor cai, quando desaba. Era isso
que ela precisava dizer ao namorado. E decidiu que, naquele dia mesmo, lhe escreveria uma carta dizendo que, apesar das tragédias, a
vida continua, e que, mesmo no
fundo das crateras da vida, sempre
resta uma esperança.
MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto
de ficção baseado em notícias publicadas na Folha
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