São Paulo, segunda-feira, 22 de janeiro de 2007

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MOACYR SCLIAR

Sobre cartas e crateras

Ela deu-se conta do erro que cometera: de fato, as cartas eram muito importantes para ele, sempre falava nelas

O que você salvaria se sua casa fosse desabar? Em situações emergenciais o paulistano geralmente tenta salvar documentos, dinheiro, jóias, roupas e fotos. A vida é sempre o valor maior e sua manutenção, motivo de alívio. Diz Andreza de Souza, 23, moradora da rua Capri: "Eu queria pegar umas calcinhas, mas fiquei com vergonha do funcionário da Defesa Civil que me acompanhava. Ele me deu somente dois minutos, e só tinha tempo para levar minha escova de dentes, um edredom, duas calças jeans e uma blusa".
Cotidiano, 21 de janeiro

-O que é que você levaria, se tivesse de abandonar sua casa às pressas? -perguntou o rapaz à namorada, depois de ler-lhe a notícia publicada na Folha.
Ela pensou um pouco.
-Acho que levaria a mesma coisa que esta moça: escova de dentes, edredom, calças jeans, blusa... E calcinha: eu não teria vergonha do funcionário. Prefiro ficar sem a vergonha do que sem as calcinhas.
-Só isso? -disse ele. -Só isso, você levaria?
Ela pensou um pouco:
-Não. Você tem razão, estas coisas são importantes, mas não suficientes. Eu pegaria meus documentos: a identidade, a carteira de trabalho... Pegaria também a única jóia que tenho, aquele colar que mamãe me deixou. Seria o caso de apanhar alguma grana, claro, mas dinheiro você sabe que eu não tenho, mesmo porque estou desempregada.
Ele ficou algum tempo em silêncio, e aí voltou à carga. E desta vez sua voz soava estranha, hostil mesmo:
-É isso, então? É isso que você levaria, se a sua casa estivesse a ponto de desabar?
Ela se deu conta de que alguma coisa estava incomodando o namorado, alguma coisa séria. Já pressentindo um bate-boca, perguntou em que, afinal, ele estava pensando. O que ela deveria ter mencionado, que não mencionara? O que havia esquecido?
-As cartas -disse ele, e a irritação agora transparecia em seu tom de voz. As cartas de amor que lhe escrevi.
Ela deu-se conta do erro que cometera: de fato, as cartas eram muito importantes para ele, sempre falava nelas. Mas também ela agora estava irritada, e disposta a partir para o confronto.
-Verdade, esqueci as cartas. Mas tenho de lhe dizer uma coisa: não sei onde estão essas cartas, simplesmente não sei. Você me conhece, sabe que sou desorganizada.
Em dois minutos, não encontraria carta alguma. Provavelmente a casa desabaria, e eu morreria procurando. Você não havia de querer isso, certo? Você não quereria que eu morresse procurando essas suas cartas.
Ele agora estava pálido, pálido de ódio.
-Vou lhe dizer uma coisa -falou, por fim. -Se você não encontra minhas cartas, a razão é muito simples: você não me ama mais. E se você não me ama, a mim pouco importa o que iria lhe acontecer.
Levantou-se, e foi embora. Ela ficou pensando: há muitas crateras na vida, mas poucas são tão profundas quanto aquela em que o amor cai, quando desaba. Era isso que ela precisava dizer ao namorado. E decidiu que, naquele dia mesmo, lhe escreveria uma carta dizendo que, apesar das tragédias, a vida continua, e que, mesmo no fundo das crateras da vida, sempre resta uma esperança.


MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha

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