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RUBEM ALVES
"Deixem-me voar..."
Eu, por enquanto, não quero morrer. Já tive medo. Hoje não tenho mais. O que sinto é uma enorme tristeza
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DONA CLARA ERA uma velhinha
de 95 anos, lá em Minas. Vivia uma religiosidade mansa,
sem culpas ou medos. Na cama, cega, a filha lhe lia a Bíblia. De repente
ela fez um gesto, interrompendo a
leitura. O que ela tinha a dizer era infinitamente mais importante. "Minha filha, sei que minha hora está chegando... Mas que pena! A vida é
tão boa..."
Eram 6h. Minha filha me acordou.
Ela tinha três anos. Fez-me então a
pergunta que eu nunca imaginara:
"Papai, quando você morrer você vai
sentir saudades?" Emudeci. Não sabia o que dizer. Ela entendeu e veio
em meu socorro: "Não chore que eu
vou te abraçar..." Ela, menina de três
anos, sabia que a morte é onde mora
a saudade, porque lá a gente fica longe dessa terra tão boa...
Eu, por enquanto, não quero morrer. Já tive medo de morrer. Hoje
não tenho mais. O que sinto é uma
enorme tristeza.
Mas tenho muito medo DO morrer. O morrer pode vir acompanhado de dores, humilhações, aparelhos
e tubos enfiados no meu corpo contra a minha vontade -sem que eu
nada possa fazer porque já não sou
mais dono de mim mesmo-, solidão
-ninguém tem coragem ou palavras para, de mãos dadas comigo, falar sobre a minha morte-, medo de
que a passagem seja demorada.
A morte deveria ser como os últimos compassos de uma sonata: belos e tristes, até que venha o silêncio.
Camus dia que o suicida prepara seu
suicídio como uma obra de arte. Seria possível planejar a própria morte, sem suicídio, como uma obra de
arte? Mas quem, nos hospitais, se
preocupa com a beleza?
Zorba morreu olhando para as
montanhas. Uma amiga me disse
que quer morrer olhando para o
mar. Montanhas e mar: haverá metáforas mais belas para o Grande
Mistério?
Mas a medicina não entende.
Um amigo contou-me dos últimos
dias do seu pai, já bem velho. As dores eram terríveis. Dirigiu-se, então,
ao médico: "O senhor não poderia
aumentar a dose dos analgésicos para que meu pai não sofra?" O médico
o olhou com olhar severo e lhe disse:
"O senhor está sugerindo que eu
pratique a eutanásia?" Impecável o
médico, na sua severidade ética e religiosa. Enquanto sua consciência
permanecia calma, o velhinho estava mergulhado num abismo de dor.
Um outro velhinho querido, 92
anos, cego, surdo, todos os esfíncteres sem controle, numa cama, em
meio aos fedores de fezes e urina de
repente o acontecimento desejado,
libertador: seu coração parou. Ah,
com certeza fora o seu anjo da guarda que assim punha um fim à sua
miséria! Aquela parada cardíaca era
o último acorde da sonata alegre que
fora a sua vida! Mas o médico, movido pelos automatismos éticos costumeiros, apressou-se a cumprir o seu
dever: debruçou-se sobre o velhinho
morto e o fez viver de novo.
Dir-me-ão que é dever dos médicos fazer todo o possível para que a
vida continue. Mas o que é vida?
Mais precisamente: o que é vida de
um ser humano? Permanecemos
humanos enquanto existe em nós a
esperança da beleza e da alegria.
Morta a chance de sentir alegria ou
gozar a beleza o corpo se transforma
numa casca de cigarra vazia.
Muitos dos "recursos heróicos"
para manter vivo um paciente são,
no meu ponto de vista, uma violência ao princípio da "reverência pela
vida". Porque, se os médicos dessem
ouvidos ao pedido que a vida está fazendo, a ouviriam dizer: "Sou um
pássaro engaiolado. Abram a porta!
Deixem-me voar livre pelos ares!"
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