São Paulo, domingo, 22 de abril de 2001

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SISTEMA PRISIONAL

Trabalho é incentivo para detentos em Hortolândia; eles ainda recebem salário e redução de pena

"Frenesi industrial" controla presos em SP

CÉLIA CHAIM
DA REPORTAGEM LOCAL

A indústria mais frenética de Hortolândia, cidade distante 100 quilômetros de São Paulo, não tem logotipo. Está situada no quilômetro cinco da rodovia Campinas-Monte Mor, a poucos minutos do centro. O turno de trabalho vai das 7h30 às 16h30, com pausa para o almoço.
A variedade de itens e os números da produção impressionam. Por dia, são 40 mil cabos de panelas, 1.500 chupetas, oito toneladas de chapas de ferro cortadas para as maiores indústrias de elevadores (Otis, Atlas e Schindler), mil unidades de cabos de telecomunicações, 6.000 pentes, flores de tecido, milhares de dúzias de pregadores de roupas, bolas de futebol, até crucifixos de madeira.
Essa "heresia" industrial está dentro de uma penitenciária, oficialmente chamada de Odete Leite de Campos Critter, mas conhecida como P2 (pelo fato de a cidade ter outros quatro presídios) e já teve reconhecida a qualidade de sua produção de cabos de extensão para sistemas de telecomunicação com a ISO 9002.
Os presos não avaliam a importância de seu feito: a ISO 9002 é um passaporte de qualidade concedido pela International Organization for Standardization (Organização Internacional para a Normalização), instituição não governamental que elabora normas internacionais e tem sede em Genebra, na Suíça.
É ali que José Thomaz Celidônio, 42 anos, psicólogo, diretor por cinco anos da P3 antes de ser conduzido à direção da P2 em julho do ano passado, tenta, por meio do trabalho, recuperar 900 presos punidos com prisão em segurança máxima.
Eles roubaram, furtaram, cometeram homicídios e crimes hediondos. São brancos e jovens com menos de 30 anos, em sua maioria. O que o psicólogo Celidônio faz por eles é tentar qualificá-los em alguma profissão para saírem da prisão com uma opção além do crime.
Com o apoio de empresas, em geral terceirizadas, 82% dos 900 presos da P2 trabalham em período integral, em troca de um salário médio de R$ 120 (e máximo de R$ 250) e da redução da pena assegurada pela regra de que a cada três dias de trabalho tira-se um dia da pena.

TV e bombom
O dinheiro é pouco, mas dá, em alguns casos, para ajudar a família, em outros para comprar uma televisão para a cela (que é ocupada por seis presos) e em todos para usar o pecúlio e, uma vez por mês, comprar bombom (o da caixa azul da Nestlé é o preferido) e "prestobarba", na verdade, o aparelho de barbear da Bic que eles chamam pelo nome do produto da concorrente Gilette.
O pecúlio é uma conta que os presos têm na Nossa Caixa Nosso Banco, de onde a direção do presídio, com uma contabilidade rigorosa, tira o dinheiro para as compras que chegam toda a primeira sexta-feira do mês. Quem não trabalha nas "fábricas" trabalha na manutenção do presídio.
São 178 presos que cozinham, se ocupam da rejeitada "marinha" como são chamadas as atividades com água (lavar panelas, verduras etc.), cuidam das instalações do prédio e até constroem suas próprias grades para as unidades de produção ao ar livre, como a de ensacamento de areia e a construção de lareiras e churrasqueiras.
São grades que lembrariam o alambrado de uma quadra de basquete não fossem os pesados portões à altura de uma prisão de segurança máxima, como é classificada a P2. Apesar disso, o local não cumpre todos os requisitos (as celas não são individuais, o corpo de guarda tem cerca de metade do número de presos quando deveria ser igual, as muralhas são inadequadas ao padrão de segurança máxima).

Custo menor
Aos trabalhadores da manutenção são destinados 15% do salários dos presos operários. À penitenciária, o aproveitamento dessa mão-de-obra tradicionalmente desocupada significa uma redução no custo médio mensal de cada preso, de R$ 650 para R$ 450.
Para a indústria que se beneficia dessa mão-de-obra caprichosa e barata, a redução de custos é extraordinária. Exemplo: um preso ganha R$ 0,60 por cada 50 dúzias de pregadores que faz; o comércio vende a R$ 0,70 a dúzia.
Há quem reclame discretamente pelo exagero do lucro desfrutado pelo fabricante. O que, pelo exemplo do pregador, é justo. Mas isso é tudo o que a direção do presídio vem conseguindo com as empresas. "Felizmente", diz o diretor, lembrando que o trabalho ao preço que for é a melhor opção disponível para devolver alguma dignidade ao preso.
Os que trabalham no corte das chapas de ferro para a empresa Cisan, fornecedora da indústria de elevadores, têm seguro pelo risco que enfrentam. Os presos relutam em se identificar, mas não escondem o orgulho ao saber que alguém, fora dali, usa alguma coisa que eles produzem.
"Você tem uma panela com esse cabo?", pergunta com entusiasmo um deles.
Se o dinheiro não é justo e a remissão de pena é uma visão da liberdade em conta-gotas, ainda ainda assim os trabalhadores da P2 de Hortolândia têm um consolo no trabalho: o que Daniel, 25 anos de idade e 13 anos e quatro meses de pena, faria 24 horas por dia nos seis metros quadrados que lhe cabem de uma cela? Onde estaria o orgulho de Adilson Bento da Silva, que começou como varredor e hoje é encarregado da manutenção de seis tornos e 22 furadeiras? Como estaria a cabeça de Anésio, 67, que de velhinho dócil só tem a expressão do rosto?
Ele murmura num tom inaudível o artigo do código penal que infringiu e o melhor, para sua sobrevivência, é que ninguém escute mesmo. Embala pentes na P2 e de lá não deve sair tão cedo.
O diretor da P2 sabe que seu trabalho, por mais eficiente que seja, não vai resolver os problemas sociais que criam todos os dias novos Anésio, Adilson, Daniel, José Carlos etc. "Quero que eles saíam daqui com um ofício, com alguma qualificação para tentar começar uma nova vida", diz Celidônio. Evitar que eles surjam, diz, não é tão simples como aumentar o policiamento e construir novos presídios. "Exige uma política social verdadeira."


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