São Paulo, domingo, 22 de abril de 2001

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CIDADANIA

Para Wacquant, morador de favela quer integração

Guetos no Brasil são das classes média e alta, diz sociólogo francês

CRISTINA GRILLO
DA SUCURSAL DO RIO

Do ponto mais alto do morro Dona Marta, em Botafogo (zona sul do Rio), o sociólogo francês Loïc Wacquant, professor da Universidade de Berkeley e pesquisador do Centro de Sociologia do Collège de France, avista o Pão de Açúcar, o ancoradouro do Iate Clube, os prédios da classe média carioca e os barracos que galgam as encostas do morro.
Para Wacquant, especialista no estudo de processos de guetificação nas grandes cidades e de sistemas penitenciários, a visão do alto do morro é simbólica. "Daqui se vê o Brasil de primeiro mundo e o da pobreza absoluta, lado a lado."
No Rio para lançar três de seus livros ("Os Condenados da Cidade", "Punir os Pobres" e "As Prisões da Miséria"), o sociólogo afirma que não são os pobres que passam por um processo de isolamento em guetos no Brasil, como acontece nos Estados Unidos, mas sim as classes altas, que se escondem cada vez mais em bairros fechados e prédios gradeados.
Leia abaixo trechos da entrevista de Wacquant à Folha, concedida logo após o sociólogo passar quatro horas pelas vielas do Dona Marta -onde aproveitou para cortar o cabelo por R$ 5,00.

Folha - As favelas brasileiras passam por um processo de isolamento semelhante ao dos guetos de negros norte-americanos?
Loïc Wacquant -
O que está acontecendo aqui, como em outras partes, é o surgimento de novas formas de pobreza criadas pela desregulamentação da economia. A imagem das favelas é a de um lugar infernal, repleto de violência. Hoje vimos que lá as pessoas trabalham, vivem uma rotina na qual crianças brincam nas ruas. Não vou negar que há muita pobreza, mas a representação desse território como uma área totalmente destituída, desorganizada, precisa ser modificada. Elas não são um agregado de pessoas pobres, sem cultura.
O fato de termos entrado em uma favela em total segurança, e passar quatro horas lá, mostra que é possível entrar, em condições específicas, e se sentir seguro. O que acontece é a estigmatização econômica e territorial. Há o desemprego, o subemprego e o estigma de morar em um lugar considerado infernal. Vimos isso nos guetos norte-americanos, que costumavam ser um território onde os negros tinham orgulho de viver. Agora ninguém se identifica com os guetos.

Folha - Estamos nesse nível de estigma social aqui?
Wacquant -
O termo gueto vem sendo usado de uma maneira metafórica em nossa sociedade, para designar regiões de pobreza, mas é preciso ter cuidado ao usá-lo para não aumentar a espiral da estigmatização.
Guetos são um espaço homogêneo, onde há só um tipo de população. É uma cidade separada dentro da cidade. As favelas vivem uma relação simbiótica com a cidade, não são totalmente separadas. Os moradores trabalham fora, a cabeleireira que cortou meu cabelo mora em outro bairro e trabalha lá. As fronteiras entre as favelas e a cidade são tênues.
Os guetos sempre foram uma forma de controle étnico-racial, para que uma categoria estigmatizada não "contaminasse" o restante da sociedade. Mas as favelas são uma comunidade de trabalhadores. Há diferenças entre elas, mas são variações sobre o tema da sobrevivência diária em condições extremas, de marginalidade econômica. As favelas são mais antiguetos do que guetos. O que seus moradores querem é ser iguais ao restante da cidade.

Folha - Então não se pode falar em um processo de "guetificação" das favelas brasileiras?
Wacquant -
A dinâmica de guetificação aqui vem das classes mais altas, que querem criar seus guetos, com seus bairros fechados. Quando saímos da favela, o que vimos? A prefeitura com seus muros altos, algumas áreas comerciais, como se formassem um cinturão de proteção, e logo depois grandes prédios de classe média e alta, gradeados como prisões. São prisões limpas, bonitas, auto-impostas, nas quais as pessoas escolheram viver. É nesses locais que as classes médias e altas brasileiras estão se segregando.

Folha - Qual o papel do tráfico neste cenário?
Wacquant -
A proposta neoliberal de desregulamentação da economia, usando a desculpa da globalização, aumenta o desemprego e o subemprego. Os mais pobres voltam-se para a economia das ruas, e nela qual é a mais confiável? A economia ilegal, principalmente o tráfico.
As propriedades que costumávamos atribuir ao mercado de trabalho estão todas lá: fornece empregos com os quais se pode contar, há salários decentes, há possibilidade de ascensão profissional. É uma economia corporativa, na qual se pode confiar. Não há o receio de que seu emprego vá desaparecer na próxima semana ou no próximo ano.
O paradoxo é que todas as qualidades da economia formal foram transferidas para a economia da droga. Então, por que a surpresa quando as pessoas se voltam para esse "mercado de trabalho"? Para os que aceitam, isso faz sentido, economicamente falando. E o Estado, não só no Brasil, usa o tráfico para justificar a estratégia de repressão e violência policial.

Folha - Qual seria a solução?
Wacquant -
O país pode optar por um caminho difícil, de tentar criar formas de proteção contra essa economia de mercado, regulamentando a economia de uma forma inteligente, talvez regularizando a economia informal para diminuir a desigualdade social. Ou pode importar o modelo americano de punição dos pobres, com um Estado policial muito violento, o que pode levar a uma outra forma de ditadura.
Ela poderá ser boa para alguns, mas para todo o restante será a ditadura do mercado e do Estado policial, que depois de ser aplicado aos pobres e favelados, quem sabe onde irá parar?


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