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CECILIA GIANNETTI
No escuro
As crianças do bairro se habituaram a passar esse tipo de noite em alerta, cronometrando cada batalha
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UM ESTRONDO VEIO junto com
a escuridão. A última imagem nítida da tela do computador e dos objetos a seu redor foi
iluminada por um clarão que durou
meio segundo. Enxerguei naquele
flash o contorno das coisas que habitam minha mesa, como o porta-retratos e um Beatle de plástico -os
rostos na fotografia e a cara de plástico do boneco me pareceram alterados; refletiram um susto inanimado. Em seguida, todos os objetos familiares do quarto desapareceram
no breu, e uma desconfiança surgiu
feito um choque. Senti que, quando
a energia caiu, foi-se junto com ela a
versão mais recente de um trabalho
que eu vinha batucando no micro.
Levantei da cadeira, dei um passo
incerto em direção à janela e espiei a
rua: os apartamentos dos arredores
estavam todos apagados. A falta de
música e diálogos de novela confirmava o apagão generalizado.
Numa rotina normal, são esses os
ruídos que costumam atravessar as
paredes de papelão de cada apartamento dia e noite, ecoando pelos
corredores do prédio. Não havia nada disso agora.
Tive a sensação de que, mesmo
que a luz voltasse logo, alguma coisa
errada demais e irreversível havia
acontecido ao computador. Ele não
havia simplesmente parado de funcionar, resignado com o corte súbito
de energia, pronto para retomar
suas funções assim que algum sujeito com capacete e luvas aparecesse
para emendar alguns fios nos postes. Conheço a máquina, sei mais sobre ela do que a maioria das pessoas
costuma saber a respeito de tios-avós distantes e primos de terceiro
grau. Posso garantir que em nenhuma das quedas energéticas anteriores ela apagou com tamanha dramaticidade, com um mis-en-scène elétrico tão espetacular quanto esse.
Em determinados momentos, estou
quase certa, chegou a soltar faíscas.
Lá fora, o drama era um tiroteio.
Quadrilhas de traficantes debatendo a posse de territórios. Ou a polícia
entrando no morro outra vez. Talvez tenham atingido alguns transformadores, por isso o estrondo, por
isso o breu. Certeza, só que voavam
balas sobre toda a vizinhança.
De repente, os helicópteros da polícia se afastaram, cessou o fogo e
deu para escutar um burburinho repleto de dúvidas e palpites nossos,
que permanecíamos no escuro.
No dia seguinte, a garotada vai discutir se a coisa começou às 23h ou às
23h15 -com os ruídos que já são capazes de distinguir como o de metralhadoras-, tendo uma pausa às
23h30, para retornar à carga total a
1h da madrugada, com a chegada do
Batalhão Especial à favela. As crianças do bairro se habituaram a passar
esse tipo de noite em estado de alerta, cronometrando a duração de cada batalha, para depois comparar as
impressões do colégio.
O técnico em informática que tenta ressuscitar minha máquina me
diz que devo encarar isso como uma
maneira de ganhar perspectiva: antes ter o computador ferido durante
um apagão do que os parentes e amigos transformados em estatística de
tiroteio. E alguém tem dúvida?
Queria que as janelas voltassem
logo a piscar acesas no morro; serviria como sinal de normalidade. Mas
a energia retornará antes para nós
aqui embaixo, no asfalto. As casas da
favela ainda ficarão sem energia por
mais alguns dias. Por enquanto -só
por hoje-, a noite fica sossegada outra vez, cheia de mortos bem perto
desta rua, sobre quem vamos ouvir
falar vagamente na televisão.
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