São Paulo, terça-feira, 22 de abril de 2008

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CECILIA GIANNETTI

No escuro


As crianças do bairro se habituaram a passar esse tipo de noite em alerta, cronometrando cada batalha

UM ESTRONDO VEIO junto com a escuridão. A última imagem nítida da tela do computador e dos objetos a seu redor foi iluminada por um clarão que durou meio segundo. Enxerguei naquele flash o contorno das coisas que habitam minha mesa, como o porta-retratos e um Beatle de plástico -os rostos na fotografia e a cara de plástico do boneco me pareceram alterados; refletiram um susto inanimado. Em seguida, todos os objetos familiares do quarto desapareceram no breu, e uma desconfiança surgiu feito um choque. Senti que, quando a energia caiu, foi-se junto com ela a versão mais recente de um trabalho que eu vinha batucando no micro.
Levantei da cadeira, dei um passo incerto em direção à janela e espiei a rua: os apartamentos dos arredores estavam todos apagados. A falta de música e diálogos de novela confirmava o apagão generalizado.
Numa rotina normal, são esses os ruídos que costumam atravessar as paredes de papelão de cada apartamento dia e noite, ecoando pelos corredores do prédio. Não havia nada disso agora.
Tive a sensação de que, mesmo que a luz voltasse logo, alguma coisa errada demais e irreversível havia acontecido ao computador. Ele não havia simplesmente parado de funcionar, resignado com o corte súbito de energia, pronto para retomar suas funções assim que algum sujeito com capacete e luvas aparecesse para emendar alguns fios nos postes. Conheço a máquina, sei mais sobre ela do que a maioria das pessoas costuma saber a respeito de tios-avós distantes e primos de terceiro grau. Posso garantir que em nenhuma das quedas energéticas anteriores ela apagou com tamanha dramaticidade, com um mis-en-scène elétrico tão espetacular quanto esse. Em determinados momentos, estou quase certa, chegou a soltar faíscas.
Lá fora, o drama era um tiroteio. Quadrilhas de traficantes debatendo a posse de territórios. Ou a polícia entrando no morro outra vez. Talvez tenham atingido alguns transformadores, por isso o estrondo, por isso o breu. Certeza, só que voavam balas sobre toda a vizinhança.
De repente, os helicópteros da polícia se afastaram, cessou o fogo e deu para escutar um burburinho repleto de dúvidas e palpites nossos, que permanecíamos no escuro.
No dia seguinte, a garotada vai discutir se a coisa começou às 23h ou às 23h15 -com os ruídos que já são capazes de distinguir como o de metralhadoras-, tendo uma pausa às 23h30, para retornar à carga total a 1h da madrugada, com a chegada do Batalhão Especial à favela. As crianças do bairro se habituaram a passar esse tipo de noite em estado de alerta, cronometrando a duração de cada batalha, para depois comparar as impressões do colégio.
O técnico em informática que tenta ressuscitar minha máquina me diz que devo encarar isso como uma maneira de ganhar perspectiva: antes ter o computador ferido durante um apagão do que os parentes e amigos transformados em estatística de tiroteio. E alguém tem dúvida?
Queria que as janelas voltassem logo a piscar acesas no morro; serviria como sinal de normalidade. Mas a energia retornará antes para nós aqui embaixo, no asfalto. As casas da favela ainda ficarão sem energia por mais alguns dias. Por enquanto -só por hoje-, a noite fica sossegada outra vez, cheia de mortos bem perto desta rua, sobre quem vamos ouvir falar vagamente na televisão.


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