São Paulo, quarta-feira, 22 de junho de 2011

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Enquanto aguarda remoção, dentista vela mãe em asilo

Marlene Bergamo/Folhapress
Vera Lucia Hernandes, 55, abraça o corpo da mãe, Alice, 82, enquanto aguarda a sua remoção, que deve ocorrer só hoje

LAURA CAPRIGLIONE
DE SÃO PAULO

A dentista Vera Lucia Hernandes, 55, entra silenciosa no quarto da mãe e acende a luz. Ajoelha-se no chão e abraça o corpo franzino (40 kg) de Alice, 82, que jaz na cama. São 19h. A mãe morreu às 12h45, depois de três anos de definhamento provocado pelo Alzheimer.
Ninguém no Serviço Funerário Municipal sabe informar a que horas o cadáver será removido do Lar Pedro Balázs, asilo de idosos na zona oeste da cidade, onde Alice vivia, perto da casa da filha.
As demais hóspedes não sabem ainda da morte da companheira. Então, enquanto espera, o corpo de Alice está escondido no quarto fechado, ao qual só Vera, agora, tem acesso.
Os 80 parentes e amigos que ligam para saber do velório, recebem da filha resposta improvável: "Sabe, não temos ainda o corpo para velar. Quando tivermos, aviso."
José de Souza, que elaborou a nota de contratação de funeral foi meticuloso. Escreveu que Alice Fonseca Hernandes morreu de insuficiência cardíaca, coronariana, miocardioesclerose e insuficiência renal. Descreveu todos os detalhes do sepultamento e do velório, mas não conseguiu fixar um prazo para a remoção: "indeterminado". Por causa da greve no serviço funerário.
Na frente da palavra "indeterminado", Vera escreveu com letra miúda: "Li e não concordei." Foi seu protesto.
A filha providenciou tudo. Comprou caixão turmalina com fundo impermeável, contratou remoção, carrinho de transporte dentro do cemitério, véu rendado, mesa de condolências, jogo de quatro velas e flores. Pagou R$ 2.626,10 no cartão de crédito, parcelado em três vezes.
Ao saber da greve e da dificuldade com a remoção, ela até cogitou contratar um carro funerário de outra cidade. Disseram-lhe que não podia por causa da lei que garante a exclusividade do serviço para a autarquia municipal.
Pensou, então, em levar no próprio carro o corpo da mãe ao cemitério da Freguesia do Ó (zona norte), onde fica o jazigo da família. A Vigilância Sanitária não permite.
Às 21h, da garagem do Serviço Funerário, o atendente Wilson informava que havia 120 corpos a serem removidos antes do de Alice. "Vai demorar", disse. Face ao argumento de que o enterro estava agendado para as 11h de hoje, Wilson exclamou: "Pode esquecer. Vai ter devolução do dinheiro pago para flores, velas e velório."
Vera checa se o corpo da mãe calça meias. Os sapatos, ela doou para o asilo. Ainda enxugando as lágrimas, ela passa pela sala de televisão, onde duas dezenas de idosas assistem à novela. Uma residente pergunta-lhe pela mãe. "Está bem. Muito melhor agora."
Da garagem, Wilson tentava consolar: "A senhora deve se considerar até privilegiada, porque o seu ente querido está em um asilo. Já pensou aqueles que estão em casa, com as famílias?"


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