São Paulo, segunda-feira, 22 de agosto de 2011

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BICHOS

JAIME SPITZCOVSKY - jaimespitz@uol.com.br

A hora da morte


Estava devastado. Queria ir para casa e encontrar a matilha, o que me ajudaria a mitigar a dor

Quem se apega a um cão pode pagar um preço bastante alto. A cobrança desaba no momento da morte. Como a vida média canina é, de forma injusta, menor do que a humana, ao longo de nossa existência provavelmente temos de enfrentar a perda de um ou mais companheiros. É possível nos prepararmos para o episódio? E os veterinários, como lidam conosco nessa hora?
Desde os sete anos de idade desfrutei da companhia da Ciça, um azougue, mistura de teckel e pequinês. Ela adorava alcachofras e, com habilidade ímpar, segurava a folha com a ponta da pata para se deliciar com a parte carnuda.
Ciça morreu com 18 anos. Jamais vou me esquecer daquele sábado friorento, em 1989, quando a levei ao veterinário. Sua vitalidade se esvaía a olhos vistos. Propuseram a eutanásia e, naquele quadro, parecia não restar alternativa. Despedi-me com um beijo prolongado na cabecinha quase inerte, já coberta por vários pelos esbranquiçados.
Quem, em casa, sentiu o impacto com mais intensidade foi minha mãe. Ela mimava a Ciça, ensinando-a a degustar alcachofra ou a devorar trigo sarraceno com carne assada, prato predileto da cachorra. Após a morte da pequena companheira, minha mãe, ainda muito abalada, recebeu uma carta do veterinário. Num esforço admirável, ele buscava confortá-la.
Depois da Ciça, outra cachorra de personalidade forte e com manias entrou em minha vida. Convivi com a samoieda Oksana de seus três meses de idade até a morte, aos 11 anos, provocada por um câncer de fígado. Era a matriarca da matilha, formada por outros cinco cães da mesma raça.
Na manhã de um domingo estival, Oksana foi operada às pressas. O tumor se rompera. E ela enfrentava a segunda cirurgia contra o câncer. Dessa vez, o esforço e a habilidade do veterinário foram em vão. Lembro-me da despedida com a samoieda. Minutos antes da sua entrada no centro cirúrgico, beijei-a na testa, que tremia devido à respiração ofegante.
O veterinário, responsável por salvá-la na primeira cirurgia, se encarregou de me transmitir a temida notícia. Oksana não sobreviveria a mais um procedimento. Ele veio à sala de espera. Sua voz suave e tranquila não combinava com o momento e tampouco com sua avantajada altura e compleição física.
Levei algum tempo para digerir o choque. Na verdade, já me preparava (ou tentava me preparar) para a perda. Mas estava devastado. Queria ir para casa e encontrar a matilha, o que me ajudaria a mitigar a dor.
Ao me despedir de funcionários da clínica, fui surpreendido por uma advertência: não poderia deixar o local antes de acertar a conta. Isso mesmo. Argumentei que não me sentia apto a realizar o pagamento, o que demandava, por exemplo, checar contas. E que deixava meu cartão de crédito ou qualquer outra garantia.
A inflexibilidade dominava os funcionários. Pedi para falar com a proprietária que, pelo telefone, alinhou argumentos despropositados. Paguei e prometi nunca mais voltar a um local incapaz de respeitar o momento de dor de quem acabava de perder uma companheira.


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