São Paulo, quinta-feira, 22 de outubro de 2009

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PASQUALE CIPRO NETO

"Se vós não sereis minha, vós não sereis..."


"O "se" (...) não era condicional, mas uma constatação desesperançada, equivalente a um "já que", ou seja..."

RECEBO DE WAGNER HOMEM, curador do site oficial de Chico Buarque, uma mensagem em que há um "aperitivo" do livro "História de Canções - Chico Buarque". Escrito por Wagner e lançado pela Editora LeYa, o livro relata uma centena de histórias relacionadas às circunstâncias em que foram compostas muitas das canções de Chico.
No generoso "aperitivo" que me enviou, Wagner escreveu isto: "...constam dois casos ligados à nossa língua portuguesa. Aí vão eles. Espero que goste". Como não gostar, se as duas histórias são deliciosas?
Com a devida permissão de Wagner, vou tratar do caso do emprego da forma verbal "sereis", em "Se vós não sereis minha, vós não sereis de mais ninguém", frase que integra a letra de "A voz do dono e o dono da voz", do disco "Almanaque", de 1981.
Antes de entrar no mérito da questão linguística em si, vale a pena lembrar o que motivou Chico a escrever a canção. Em 1973, durante uma série de shows chamada "Phono 73", organizada pela então gravadora de Chico, a Phonogram, o autor de "A Banda", acompanhado pelo MPB4, tentou cantar (sem letra) "Cálice" (de Gilberto Gil e Chico Buarque). A música tinha sido proibida pela censura militar. Seguindo ordens dos advogados da gravadora, os técnicos de som cortaram, um a um, os microfones do palco do Anhembi.
As relações entre Chico e a gravadora azedaram e, salvo engano, romperam-se. Durante as gravações de seu disco de 1981, o antológico "Almanaque", que seria lançado pelo selo Ariola... A Phonogram comprou a Ariola, e Chico se viu novamente preso ao "dono da voz", daí a criação da genial "A Voz do Dono e o Dono da Voz", em que Chico lavra estes versos, carregados de ironia e duplo sentido: "Fizeram bodas de acetato -de fato / Assim como os nossos avós / O dono prensa a voz, a voz resulta um prato / Que gira para todos nós (...) Enfim a voz firmou contrato / E foi morar com novo algoz / Queria se prensar, queria ser um prato / Girar e se esquecer veloz".
Pois bem. Em seu livro, Wagner Homem relata que um professor mandou um e-mail para o site de Chico, questionando se o correto não seria "Se vós não fordes minha" em vez de "Se vós não sereis minha".
Para encurtar a história, vamos ao que disse Chico sobre o caso: "O "se", no caso, não era condicional, mas uma constatação desesperançada, equivalente a um "já que", ou seja...".
Sabe das coisas o nosso Chico. A conjunção "se" pode ser causal, como atestam diversos registros (clássicos e modernos): "Se você não sabe inglês, não adianta fazer a prova" (do "Dicionário Unesp do Português Contemporâneo", de 2004); "Se por vinte anos, nesta furna escura / Deixei viver a minha maldição / Hoje, velha e cansada de tortura, / Minha'alma se abrirá feito um vulcão" (de Olavo Bilac, citado no "Aurélio").
O que queria o professor que mandou o e-mail para o site é que Chico tratasse o "se" como conjunção condicional, o que justificaria o emprego de "fordes", flexão da segunda pessoa do plural do futuro do subjuntivo do verbo "ser" ("se eu for, se tu fores, se ele/a for, se nós formos, se vós fordes, se eles/as forem").
Cabe lembrar que a raiz de todas as formas do futuro do subjuntivo é a mesma da segunda pessoa do singular do pretérito perfeito (que, no caso de "ser", é "foste", cuja raiz é "fo-"); as terminações do futuro do subjuntivo são iguais para 100% dos verbos ("r, res, r, rmos, rdes, rem").
Mais uma vez, é preciso lembrar que a gramática pela gramática não leva ninguém a canto algum. Quem se fixa no fato de que o "se" é condicional e fim e que por isso impõe o modo subjuntivo deixa de perceber as nuanças do texto e, consequentemente, deixa de empregar a forma adequada (e não a "correta"). É isso.

inculta@uol.com.br


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