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MOACYR SCLIAR
Os brinquedos em seu limbo
Aonde vão os brinquedos quebrados?
Folhinha 13.dez.2003
Ela passou a vida na mesma casa, uma enorme e luxuosa mansão situada num bairro aristocrático da cidade . Ali
nasceu, ali passou a infância.
Quando casou, o marido quis
morar num apartamento moderno. Ela recusou. O pretexto era a
necessidade de cuidar dos pais, já
idosos, mas a verdade é que não
conseguia se afastar do casarão,
mesmo que este já não fosse prático. A principal razão para isso estava no sótão. Sim, a casa era tão
antiga que ainda tinha sótão, ao
qual se chegava por uma escadinha. Esta terminava numa espécie de alçapão que, levantado, dava passagem ao sombrio recinto.
Ali estavam móveis antigos, baús
com velhas roupas, objetos diversos sem serventia. E ali estavam
os brinquedos dela.
Muitos brinquedos. Filha única,
havia sido mimada pelos pais,
desde criança. A mãe, inclusive,
guardara para ela as suas próprias bonecas, belíssimas, sofisticadas. Às bonecas se haviam juntado os ursinhos de pelúcia, os cavalinhos, os cachorrinhos. Mas na
mão da garota os brinquedos não
duravam muito, mesmo porque
serviam como válvula de escape
para sua agressividade. Cada vez
que ficava zangada, arremessava
uma boneca, ou um ursinho, contra a parede. E as bonecas despedaçadas e os ursinhos rasgados tinham um destino comum, o sótão. Uma espécie de limbo, como
dizia o pai, um homem calmo e
resignado.
Agora os pais já faleceram e os
brinquedos de há muito sumiram: estão todos no sótão. Onde
acumulam poeira e talvez sirvam
de companhia para os ratos. A cada dezembro o marido lhe faz
uma proposta: vamos doar aquilo
tudo para uma instituição de caridade. Proposta que ela recusa.
Como recusa subir ao sótão.
Mas, em seus pesadelos, vê os
brinquedos reunidos. Eles falam,
como acontece nos contos de fada. E de quem falam? Dela, claro.
Da ingrata dona que está a apenas uns metros de distância, mas
não quer vê-los. Não quer retornar à sua infância.
Os brinquedos, porém, não têm
pressa. Sabem que um dia, movida por um impulso irresistível, ela
subirá, como um autômato, a escada do sótão. Depois que entrar,
o alçapão se fechará para nunca
mais abrir. Ela então sentará no
chão. Rodeada pelas bonecas e
pelos ursinhos, que a fitarão impassíveis, ela lhes fará a pergunta
que, desde há muito, tem em sua
mente: qual o sentido da vida?
O silêncio será a resposta. A
menos que um daqueles velhos
gatinhos consiga ainda emitir
um débil miado.
Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.
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