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São Paulo, segunda-feira, 22 de dezembro de 2003

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MOACYR SCLIAR

Os brinquedos em seu limbo

Aonde vão os brinquedos quebrados?
Folhinha 13.dez.2003

Ela passou a vida na mesma casa, uma enorme e luxuosa mansão situada num bairro aristocrático da cidade . Ali nasceu, ali passou a infância. Quando casou, o marido quis morar num apartamento moderno. Ela recusou. O pretexto era a necessidade de cuidar dos pais, já idosos, mas a verdade é que não conseguia se afastar do casarão, mesmo que este já não fosse prático. A principal razão para isso estava no sótão. Sim, a casa era tão antiga que ainda tinha sótão, ao qual se chegava por uma escadinha. Esta terminava numa espécie de alçapão que, levantado, dava passagem ao sombrio recinto. Ali estavam móveis antigos, baús com velhas roupas, objetos diversos sem serventia. E ali estavam os brinquedos dela.
Muitos brinquedos. Filha única, havia sido mimada pelos pais, desde criança. A mãe, inclusive, guardara para ela as suas próprias bonecas, belíssimas, sofisticadas. Às bonecas se haviam juntado os ursinhos de pelúcia, os cavalinhos, os cachorrinhos. Mas na mão da garota os brinquedos não duravam muito, mesmo porque serviam como válvula de escape para sua agressividade. Cada vez que ficava zangada, arremessava uma boneca, ou um ursinho, contra a parede. E as bonecas despedaçadas e os ursinhos rasgados tinham um destino comum, o sótão. Uma espécie de limbo, como dizia o pai, um homem calmo e resignado.
Agora os pais já faleceram e os brinquedos de há muito sumiram: estão todos no sótão. Onde acumulam poeira e talvez sirvam de companhia para os ratos. A cada dezembro o marido lhe faz uma proposta: vamos doar aquilo tudo para uma instituição de caridade. Proposta que ela recusa.
Como recusa subir ao sótão. Mas, em seus pesadelos, vê os brinquedos reunidos. Eles falam, como acontece nos contos de fada. E de quem falam? Dela, claro. Da ingrata dona que está a apenas uns metros de distância, mas não quer vê-los. Não quer retornar à sua infância.
Os brinquedos, porém, não têm pressa. Sabem que um dia, movida por um impulso irresistível, ela subirá, como um autômato, a escada do sótão. Depois que entrar, o alçapão se fechará para nunca mais abrir. Ela então sentará no chão. Rodeada pelas bonecas e pelos ursinhos, que a fitarão impassíveis, ela lhes fará a pergunta que, desde há muito, tem em sua mente: qual o sentido da vida?
O silêncio será a resposta. A menos que um daqueles velhos gatinhos consiga ainda emitir um débil miado.


Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.


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