São Paulo, Domingo, 23 de Janeiro de 2000


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São Paulo iniciou o século 20 com 240 mil habitantes. De 1900 a 1920 a população dobrou, atingindo 580 mil moradores
Imigrantes transformam vila em 3ª maior cidade do mundo

OTÁVIO CABRAL
da Reportagem Local

Uma vila agrícola, centrada em uma igreja, com pouco mais de mil habitantes, todos eles índios e portugueses. Assim era São Paulo há 446 anos, quando foi fundada pelo jesuíta José de Anchieta. O nome oficial do vilarejo era São Paulo de Piratininga. Duas grandes ameaças pairavam sobre o pequeno povoado: as tribos indígenas inimigas e as epidemias.
Nos dois séculos seguintes, pouca coisa mudou. A vila, promovida a cidade em 1711, continuou rural. Os principais produtos agrícolas eram a mandioca, o milho e o amendoim. As mercadorias não-agrícolas eram trazidas das duas principais cidades da capitania, Santos e São Vicente.
A pobreza da cidade e a busca por ouro incentivou os bandeirantes a buscar novas terras. Alguns deles enriqueceram, mas a cidade continuou miserável. Nessa época, em meados do século 18, negros escravos começaram a chegar à cidade. Mas como os proprietários não tinham capital, preferiam escravizar os indígenas.
Apenas em 1808 começaram a chegar aqueles que mudariam as características da cidade. À época, São Paulo tinha 24 mil habitantes. 20% das mulheres chamavam Maria e 17%, Anna. Dos homens, os nomes mais comuns eram José (17%) e Joaquim (13%). Inegável sinal do domínio português.
Quase 200 anos depois, a cidade abriga 10 milhões de pessoas. Ainda há muitos João e Maria. Mas é muito comum encontrar nas ruas com Jorge, Juliana, Sebastião, Isaac, Hiroshi e Washington. Inegável sinal das várias nacionalidades que formaram o paulistano.
A primeira presença de um imigrante não-português em São Paulo foi registrada em 1808, conta a demógrafa histórica Maria Luiza Marcílio, em seu livro "A Cidade de São Paulo - Povoamento e População". O pioneiro foi um inglês chamado Mawe. Logo após, passaram por aqui um sueco Beyer, os alemães von Spix e von Martius e o francês Saint-Hilaire. Eram presenças esporádicas e a cidade continuou com menos de 30 mil habitantes até 1870.
A grande virada começou em 1880. O excesso de população na Europa provocou uma crise econômica e desemprego. Trabalhadores europeus, principalmente italianos, portugueses e espanhóis, buscaram novos países.
A emergente cultura do café no interior de São Paulo, com a abolição dos escravos, precisava de braços e acolheu os imigrantes. As grandes safras criaram a primeira geração de indústrias na capital. Boa parte dos europeus ficou na cidade para trabalhar em sacarias e indústrias têxteis e alimentícias.
A libertação dos escravos também contribuiu para a urbanização acelerada. Negros libertos deixaram roças no interior rumo à capital em desenvolvimento. A população cresceu em progressão geométrica. São Paulo iniciou o século 20 com 240 mil habitantes. Dez anos antes, eram apenas 65 mil pessoas na cidade.
O médico Giuseppe Cabrini ouviu muitas histórias desse período. Seu avô chegou a São Paulo em 1901, vindo de Verona. Passou dois meses na famosa Hospedaria do Imigrante, no Brás.
Trabalhou no porto de Santos por dois anos e voltou a São Paulo em 1903 para trabalhar em uma indústria de sacos para café. Com o crescimento da cidade, abriu uma venda no Brás. O comércio e o café davam dinheiro e mudavam a cara da cidade.
"Quando meu avô chegou, o Brás era um bairro afastado, a Paulista só tinha sítios. Mas tudo cresceu e ele ganhou muito dinheiro vendendo comida para os operários que construíram as mansões dos barões do café na Paulista", conta Cabrini.
Na época que o nonno Cabrini chegou a São Paulo, o italiano era a língua mais falada na cidade. Havia dois italianos para cada brasileiro. Os espanhóis também proliferavam, eram 12% da população. Portugueses e negros formavam o restante da cidade. A miscigenação ficou comum.
Ainda na década de 10, chegaram a São Paulo os primeiros japoneses. A presença deles era pequena, pois a maioria foi trabalhar no café. Mas alguns olhos puxados foram vistos pela primeira vez na capital paulistana em 1908.
Os costumes do ocidente assustavam os orientais. O japonês Keiji Kita desembarcou em Santos em 1915 e, antes de pegar o trem para São Paulo, recebeu uma refeição comum por aqui: pão com linguiça. Acostumado com sashimi, não teve coragem de experimentar a novidade. Jogou a linguiça fora e comeu apenas o pão.
A diversidade de costumes foi crescendo junto com a população da cidade. Na década de 20, São Paulo era cheia de cantinas italianas e restaurantes espanhóis. A Bela Vista começava a se tornar um reduto da colônia italiana. O mesmo acontecia com o Cambuci, tomado pelos espanhóis.
Entre 1900 e 1920 a população paulistana dobrou, atingindo 580 mil moradores. Mas, com a Primeira Guerra Mundial, o perfil do imigrante passou por uma alteração. Profissionais liberais e comerciantes, com problemas políticos e religiosos em suas terras de origem, passaram a substituir os agricultores nos navios que saíam da Europa rumo à América.
A decadência da cultura do café também provocou um êxodo rural. Milhares de estrangeiros que se dedicavam à cafeicultura migraram para São Paulo em busca de empregos na indústria. A cidade viveu sua revolução industrial.
Os refugiados foram fundamentais no crescimento da indústria. Entre as duas guerras, a cidade recebeu pelo menos 100 mil profissionais europeus e orientais. Bairros como Jardins e Pinheiros passaram a concentrar os imigrantes mais qualificados.
A alemã Lore Jäger chegou em 1936 a São Paulo, aos 13 anos. Sua família, judia, fugia do nazismo que dominava a Alemanha. O pai de Lore, Ugo, trabalhava na bolsa de valores de Frankfurt. Como não havia nada semelhante no Brasil, se tornou gerente de uma empresa de importação de bombas de gasolina. Anos mais tarde, comprou a empresa.
Os Jäger testemunharam a transformação da cidade com fortes características rurais em uma metrópole urbana. Quatro anos após o desembarque da família, São Paulo tinha 1,3 milhão de habitantes. Avenidas, praças e linhas de bonde eram construídas em sequência pela cidade.
"Quando cheguei, a avenida Rebouças não existia, era um matagal, com um córrego no meio", recorda Lore. "Havia uma ponte de madeira ligando o lado dos Jardins ao lado de Pinheiros."
Poucos anos depois, o matagal foi substituído pelo asfalto. Lore viu também a transformação no centro. "Na primeira vez que fui ao viaduto do Chá, balançava quando passava um bonde. Logo construíram o viaduto novo."
Os Jäger moraram inicialmente em uma pensão na esquina da rua Augusta com a avenida Paulista. De lá, mudaram-se para a avenida Brasil, "que ainda era de terra". Em 1941, a família se transferiu para um "fim do mundo", a Lapa, onde permanece até hoje.
Lore conta que os terrenos enormes com preços módicos atraíram a família para a periferia da cidade àquela época. Para chegar em casa, era necessário pegar o bonde. A cidade crescia, mas ainda conservava muito da paisagem rural. "No primeiro dia na Lapa, minha mãe ficou brava porque uma vaca entrou no jardim e comeu as plantas dela." A diversão da família no fim-de-semana era nadar no rio Tietê.
Durante a Segunda Guerra Mundial, a imigração em massa foi proibida pelos governos europeus, que precisavam da mão-de-obra nas frentes de batalha. Porém, refugiados de guerra chegavam em grandes grupos.
Em 1946, após perambular por países europeus, o marceneiro iugoslavo Avrahan Ben Avran chegou a São Paulo. Sua cidade, Novisad, na Iugoslávia, foi destruída pelos bombardeios dos alemães.
Avran se instalou no Bom Retiro, bairro com forte presença da comunidade judaica. Montou uma fábrica de móveis para equipar os comércios dos patrícios.
Avran percebeu que a concorrência era grande na marcenaria, mas que a cidade tinha poucas opções gastronômicas. Abriu uma doçaria no Bom Retiro. Vendia doces típicos de seu país. O que fez mais sucesso foi a burikita, doce de massa folhada com recheio de frutas. Fez sucesso. Hoje, dez anos depois de sua morte, seu filho, David, comanda a doçaria, que ainda vende burikita.
Com o fim da guerra, a Europa entrou em crise e a imigração cresceu. Italianos, alemães e povos do Báltico fugiram da fome.
Em 1948, a família Garronne trocou Torino por São Paulo. O patriarca Enrico comprou dois caminhões para transportar carga entre Santos e a capital.
Mas a dificuldade em conseguir peças quebrou o negócio de Garronne. Como já havia feito Avran, o italiano percebeu a carência de boa comida em São Paulo. Abriu, em 1951, uma doçaria, a Dulca, na rua Dom José de Barros.
Na metade do século, o centro era a parte mais chique da cidade, concentrando os melhores teatros, cinemas, lojas e restaurantes. A Dulca cresceu, mudou para a avenida Vieira de Carvalho, onde permanece até hoje.
Aos 17 anos, Anna Maria, filha mais velha de Garronne, passou a trabalhar como balconista. Na doçaria, ela viveu toda a transformação do centro, que foi perdendo população e ganhando comércio. O glamour desapareceu, dando lugar à decadência.
"Tinha prazer em andar pelo centro, era tudo muito limpo e bem cuidado. Hoje, tenho vergonha quando passo embaixo do Minhocão e vejo aquela sujeira", compara Anna Maria.
O Minhocão ainda não existia na década de 50. Mas a construção civil explodiu na cidade, com grandes avenidas sendo abertas em todas as regiões. A cidade passou a receber milhares de migrantes a cada mês. Junto com eles, estrangeiros e filhos de estrangeiros que vieram no começo do século para trabalhar na agricultura. Entre eles, muitos japoneses.
Em 1950, os orientais se incorporaram definitivamente à paisagem urbana. Jornais e rádios japoneses e chineses foram criados. Para trabalhar em um desses jornais, como gráfico, Yoshio Kita trocou a pequena Vera Cruz pela Liberdade. O pai de Yoshio, Keiji (aquele do sanduíche de linguiça), continuou no interior.
"Nessa época, muitos jovens japoneses vinham para São Paulo porque não queriam ficar com a família na roça", conta Yoshio. São Paulo já tinha uma cara semelhante à de hoje, com restaurantes e lojas. A economia era dinâmica.
Descendentes de japoneses passaram a se espalhar pelos bairros, deixando a Liberdade para as lojas típicas. Yoshio foi para o Jardim da Saúde, bairro hoje à beira da Imigrantes. "Mas naquela época a Imigrantes não existia, era tudo mato." Hoje o bairro concentra a maior comunidade japonesa da cidade, que joga gateball (esporte típico) e faz ginástica em uma praça entre prédios.
A verticalização da cidade se intensificou a partir da década de 60, quando atingiu 4 milhões de habitantes. Mineiros e nordestinos vinham em quantidade crescente, criando bairros nas periferias das zonas leste e sul. A Grande São Paulo virou uma cidade só.
A imigração perdeu importância. Apenas na década de 70, com os regimes militares dominando o continente, sul-americanos passaram a se refugiar no Brasil.
Mas uma nova onda imigratória tomou força na metade dessa década, quando São Paulo já tinha 7 milhões de habitantes. Novamente uma guerra fez um povo procurar o Brasil. Desta vez, os sul-coreanos, que começaram a trabalhar em confecções de judeus no Bom Retiro. Em pouco tempo, juntaram dinheiro e dominaram a paisagem do bairro.
Em 1974, no auge da onda, In Sung Cho trocou Seul por São Paulo. À primeira vista, a cidade o decepcionou. E assustou. "Sabia que era uma cidade grande, mas esperava uma cidade de filme, como Nova York. Mas São Paulo era grande e suja." Teve um choque na primeira vez que foi a um barbeiro. "Na Coréia, primeiro cortam o cabelo e depois lavam, para não ficar cabelo na roupa. Aqui, fazem ao contrário, achei esquisito." Mesmo assim, Cho foi ficando. Hoje tem confecção e duas lojas.
Viu a cidade crescer ainda mais e chegar a 8,5 milhões na década de 80. Viu a construção do metrô, de grandes prédios nas marginais e a verticalização dos bairros. Para fazer a cidade crescer, não paravam de chegar nordestinos.
Só na década de 90 a cidade parou de receber tantos imigrantes. A cidade inchou. A população passou a deixar a cidade rumo ao interior e a outros Estados. Imigrantes sem qualificação cederam lugar a profissionais liberais e funcionários de multinacionais.
Cho e David, no Bom Retiro, acompanham a última grande onda imigratória do século. Bolivianos começam a ocupar o bairro, trabalhando em confecções de coreanos. Boates e restaurantes latinos já são vistos no bairro.
Vendo os bolivianos na rua, Cho faz uma pergunta: qual será a nacionalidade dos próximos imigrantes. "São Paulo tem gente do mundo inteiro e não pára de crescer. Aqui na loja vem gente do mundo inteiro, mas é tudo brasileiro, filho de imigrante."
São Paulo não recebe mais gente de fora e está parando de crescer. Mas a influência estrangeira fica. Em qualquer rua, é possível ver sinais dos imigrantes que transformaram uma vila na terceira maior cidade do mundo.


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