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São Paulo iniciou o século 20 com 240 mil habitantes. De 1900 a 1920 a população dobrou, atingindo 580 mil moradores
Imigrantes transformam vila em 3ª maior cidade do mundo
OTÁVIO CABRAL
da Reportagem Local
Uma vila agrícola, centrada em
uma igreja, com pouco mais de
mil habitantes, todos eles índios e
portugueses. Assim era São Paulo
há 446 anos, quando foi fundada
pelo jesuíta José de Anchieta. O
nome oficial do vilarejo era São
Paulo de Piratininga. Duas grandes ameaças pairavam sobre o pequeno povoado: as tribos indígenas inimigas e as epidemias.
Nos dois séculos seguintes, pouca coisa mudou. A vila, promovida a cidade em 1711, continuou
rural. Os principais produtos
agrícolas eram a mandioca, o milho e o amendoim. As mercadorias não-agrícolas eram trazidas
das duas principais cidades da capitania, Santos e São Vicente.
A pobreza da cidade e a busca
por ouro incentivou os bandeirantes a buscar novas terras. Alguns deles enriqueceram, mas a
cidade continuou miserável. Nessa época, em meados do século 18,
negros escravos começaram a
chegar à cidade. Mas como os
proprietários não tinham capital,
preferiam escravizar os indígenas.
Apenas em 1808 começaram a
chegar aqueles que mudariam as
características da cidade. À época,
São Paulo tinha 24 mil habitantes.
20% das mulheres chamavam
Maria e 17%, Anna. Dos homens,
os nomes mais comuns eram José
(17%) e Joaquim (13%). Inegável
sinal do domínio português.
Quase 200 anos depois, a cidade
abriga 10 milhões de pessoas. Ainda há muitos João e Maria. Mas é
muito comum encontrar nas ruas
com Jorge, Juliana, Sebastião,
Isaac, Hiroshi e Washington. Inegável sinal das várias nacionalidades que formaram o paulistano.
A primeira presença de um imigrante não-português em São
Paulo foi registrada em 1808, conta a demógrafa histórica Maria
Luiza Marcílio, em seu livro "A
Cidade de São Paulo - Povoamento e População". O pioneiro foi
um inglês chamado Mawe. Logo
após, passaram por aqui um sueco Beyer, os alemães von Spix e
von Martius e o francês Saint-Hilaire. Eram presenças esporádicas
e a cidade continuou com menos
de 30 mil habitantes até 1870.
A grande virada começou em
1880. O excesso de população na
Europa provocou uma crise econômica e desemprego. Trabalhadores europeus, principalmente
italianos, portugueses e espanhóis, buscaram novos países.
A emergente cultura do café no
interior de São Paulo, com a abolição dos escravos, precisava de
braços e acolheu os imigrantes. As
grandes safras criaram
a primeira
geração de
indústrias na
capital. Boa
parte dos europeus ficou
na cidade
para trabalhar em sacarias e indústrias têxteis e
alimentícias.
A libertação dos escravos também contribuiu para a
urbanização
acelerada.
Negros libertos deixaram
roças no interior rumo
à capital em
desenvolvimento. A
população
cresceu em progressão geométrica. São Paulo iniciou o século 20
com 240 mil habitantes. Dez anos
antes, eram apenas 65 mil pessoas
na cidade.
O médico Giuseppe Cabrini ouviu muitas histórias desse período. Seu avô chegou a São Paulo
em 1901, vindo de Verona. Passou
dois meses na famosa Hospedaria
do Imigrante, no Brás.
Trabalhou no porto de Santos
por dois anos e voltou a São Paulo
em 1903 para trabalhar em uma
indústria de sacos para café. Com
o crescimento da cidade, abriu
uma venda no Brás. O comércio e
o café davam dinheiro e mudavam a cara da cidade.
"Quando meu avô chegou, o
Brás era um bairro afastado, a
Paulista só tinha sítios. Mas tudo
cresceu e ele ganhou muito dinheiro vendendo comida para os
operários que construíram as
mansões dos barões do café na
Paulista", conta Cabrini.
Na época que o nonno Cabrini
chegou a São Paulo, o italiano era
a língua mais falada na cidade.
Havia dois italianos para cada
brasileiro. Os espanhóis também
proliferavam, eram 12% da população. Portugueses e negros formavam o restante da cidade. A
miscigenação ficou comum.
Ainda na década de 10, chegaram a São Paulo os primeiros japoneses. A presença deles era pequena, pois a maioria foi trabalhar no café. Mas alguns olhos puxados foram vistos pela primeira
vez na capital paulistana em 1908.
Os costumes do ocidente assustavam os orientais. O japonês Keiji Kita desembarcou em Santos
em 1915 e, antes de pegar o trem
para São Paulo, recebeu uma refeição comum por aqui: pão com
linguiça. Acostumado com sashimi, não teve coragem de experimentar a novidade. Jogou a linguiça fora e comeu apenas o pão.
A diversidade de costumes foi
crescendo junto com a população
da cidade. Na década de 20, São
Paulo era cheia de cantinas italianas e restaurantes espanhóis. A
Bela Vista começava a se tornar
um reduto da colônia italiana. O
mesmo acontecia com o Cambuci, tomado pelos espanhóis.
Entre 1900 e 1920 a população
paulistana dobrou, atingindo 580
mil moradores. Mas, com a Primeira Guerra Mundial, o perfil do
imigrante passou por uma alteração. Profissionais liberais e comerciantes, com problemas políticos e religiosos em suas terras de
origem, passaram a substituir os
agricultores nos navios que saíam
da Europa rumo à América.
A decadência da cultura do café
também provocou um êxodo rural. Milhares de estrangeiros que
se dedicavam à cafeicultura migraram para São Paulo em busca
de empregos na indústria. A cidade viveu sua revolução industrial.
Os refugiados foram fundamentais no crescimento da indústria. Entre as duas guerras, a cidade recebeu pelo menos 100 mil
profissionais europeus e orientais. Bairros como Jardins e Pinheiros passaram a concentrar os
imigrantes mais qualificados.
A alemã Lore Jäger chegou em
1936 a São Paulo, aos 13 anos. Sua
família, judia, fugia do nazismo
que dominava a Alemanha. O pai
de Lore, Ugo, trabalhava na bolsa
de valores de Frankfurt. Como
não havia nada semelhante no
Brasil, se tornou gerente de uma
empresa de importação de bombas de gasolina. Anos mais tarde,
comprou a empresa.
Os Jäger testemunharam a
transformação da cidade com fortes características rurais em uma
metrópole urbana. Quatro anos
após o desembarque da família,
São Paulo tinha 1,3 milhão de habitantes. Avenidas, praças e linhas
de bonde eram construídas em
sequência pela cidade.
"Quando cheguei, a avenida Rebouças não existia, era um matagal, com um córrego no meio",
recorda Lore. "Havia uma ponte
de madeira ligando o lado dos Jardins ao lado de Pinheiros."
Poucos anos depois, o matagal
foi substituído pelo asfalto. Lore
viu também a transformação no
centro. "Na primeira vez que fui
ao viaduto do Chá, balançava
quando passava um bonde. Logo
construíram o viaduto novo."
Os Jäger moraram inicialmente
em uma pensão na esquina da rua
Augusta com a avenida Paulista.
De lá, mudaram-se para a avenida
Brasil, "que ainda era de terra".
Em 1941, a família se transferiu
para um "fim do mundo", a Lapa,
onde permanece até hoje.
Lore conta que os terrenos
enormes com preços módicos
atraíram a família para a periferia
da cidade àquela época. Para chegar em casa, era necessário pegar
o bonde. A cidade crescia, mas
ainda conservava muito da paisagem rural. "No primeiro dia na
Lapa, minha mãe ficou brava porque uma vaca entrou no jardim e
comeu as plantas dela." A diversão da família no fim-de-semana
era nadar no rio Tietê.
Durante a Segunda Guerra
Mundial, a imigração em massa
foi proibida pelos governos europeus, que precisavam da mão-de-obra nas frentes de batalha. Porém, refugiados de guerra chegavam em grandes grupos.
Em 1946, após perambular por
países europeus, o marceneiro iugoslavo Avrahan Ben Avran chegou a São Paulo. Sua cidade, Novisad, na Iugoslávia, foi destruída
pelos bombardeios dos alemães.
Avran se instalou no Bom Retiro, bairro com forte presença da
comunidade judaica. Montou
uma fábrica de móveis para equipar os comércios dos patrícios.
Avran percebeu que a concorrência era grande na marcenaria,
mas que a cidade tinha poucas
opções gastronômicas. Abriu
uma doçaria no Bom Retiro. Vendia doces típicos de seu país. O
que fez mais sucesso foi a burikita, doce de massa folhada com recheio de frutas. Fez sucesso. Hoje,
dez anos depois de sua morte, seu
filho, David, comanda a doçaria,
que ainda vende burikita.
Com o fim da guerra, a Europa
entrou em crise e a imigração
cresceu. Italianos, alemães e povos do Báltico fugiram da fome.
Em 1948, a família Garronne
trocou Torino por São Paulo. O
patriarca Enrico comprou dois
caminhões para transportar carga
entre Santos e a capital.
Mas a dificuldade em conseguir
peças quebrou o negócio de Garronne. Como já havia feito Avran,
o italiano percebeu a carência de
boa comida em São Paulo. Abriu,
em 1951, uma doçaria, a Dulca, na
rua Dom José de Barros.
Na metade do século, o centro
era a parte mais chique da cidade,
concentrando os melhores teatros, cinemas, lojas e restaurantes.
A Dulca cresceu, mudou para a
avenida Vieira de Carvalho, onde
permanece até hoje.
Aos 17 anos, Anna Maria, filha
mais velha de Garronne, passou a
trabalhar como balconista. Na
doçaria, ela viveu toda a transformação do centro, que foi perdendo população e ganhando comércio. O glamour desapareceu, dando lugar à decadência.
"Tinha prazer em andar pelo
centro, era tudo muito limpo e
bem cuidado. Hoje, tenho vergonha quando passo embaixo do
Minhocão e vejo aquela sujeira",
compara Anna Maria.
O Minhocão ainda não existia
na década de 50. Mas a construção civil explodiu na cidade, com
grandes avenidas sendo abertas
em todas as regiões. A cidade passou a receber milhares de migrantes a cada mês. Junto com eles, estrangeiros e filhos de estrangeiros
que vieram no começo do século
para trabalhar na agricultura. Entre eles, muitos japoneses.
Em 1950, os orientais se incorporaram definitivamente à paisagem urbana. Jornais e rádios japoneses e chineses foram criados.
Para trabalhar em um desses jornais, como gráfico, Yoshio Kita
trocou a pequena Vera Cruz pela
Liberdade. O pai de Yoshio, Keiji
(aquele do sanduíche de linguiça), continuou no interior.
"Nessa época, muitos jovens japoneses vinham para São Paulo
porque não queriam ficar com a
família na roça", conta Yoshio.
São Paulo já tinha uma cara semelhante à de hoje, com restaurantes
e lojas. A economia era dinâmica.
Descendentes de japoneses passaram a se espalhar pelos bairros,
deixando a Liberdade para as lojas típicas. Yoshio foi para o Jardim da Saúde, bairro hoje à beira
da Imigrantes. "Mas naquela época a Imigrantes não existia, era tudo mato." Hoje o bairro concentra a maior comunidade japonesa
da cidade, que joga gateball (esporte típico) e faz ginástica em
uma praça entre prédios.
A verticalização da cidade se intensificou a partir da década de
60, quando atingiu 4 milhões de
habitantes. Mineiros e nordestinos vinham em quantidade crescente, criando bairros nas periferias das zonas leste e sul. A Grande São Paulo virou uma cidade só.
A imigração perdeu importância. Apenas na década de 70, com
os regimes militares dominando
o continente, sul-americanos passaram a se refugiar no Brasil.
Mas uma nova onda imigratória tomou força na metade dessa
década, quando São Paulo já tinha 7 milhões de habitantes. Novamente uma guerra fez um povo
procurar o Brasil. Desta vez, os
sul-coreanos, que começaram a
trabalhar em confecções de judeus no Bom Retiro. Em pouco
tempo, juntaram dinheiro e dominaram a paisagem do bairro.
Em 1974, no auge da onda, In
Sung Cho trocou Seul por São
Paulo. À primeira vista, a cidade o
decepcionou. E assustou.
"Sabia que era uma cidade
grande, mas esperava
uma cidade de filme, como Nova York. Mas São
Paulo era grande e suja."
Teve um choque na primeira vez que foi a
um barbeiro. "Na
Coréia, primeiro
cortam o cabelo e depois
lavam, para
não ficar cabelo na roupa. Aqui, fazem ao contrário,
achei esquisito."
Mesmo assim, Cho foi ficando.
Hoje tem confecção e duas lojas.
Viu a cidade crescer ainda mais
e chegar a 8,5 milhões na década
de 80. Viu a construção do metrô,
de grandes prédios nas marginais
e a verticalização dos bairros. Para fazer a cidade crescer, não paravam de chegar nordestinos.
Só na década de 90 a cidade parou de receber tantos imigrantes.
A cidade inchou. A população
passou a deixar a cidade rumo ao
interior e a outros Estados. Imigrantes sem qualificação cederam
lugar a profissionais liberais e
funcionários de multinacionais.
Cho e David, no Bom Retiro,
acompanham a última grande
onda imigratória do século. Bolivianos começam a ocupar o bairro, trabalhando em confecções de
coreanos. Boates e restaurantes
latinos já são vistos no bairro.
Vendo os bolivianos na rua,
Cho faz uma pergunta: qual será a
nacionalidade dos próximos imigrantes. "São Paulo tem gente do
mundo inteiro e não pára de crescer. Aqui na loja vem gente do
mundo inteiro, mas é tudo brasileiro, filho de imigrante."
São Paulo não recebe mais gente de fora e está parando de crescer. Mas a influência estrangeira fica. Em
qualquer
rua, é possível ver
sinais
dos imigrantes
que
transformaram uma
vila na terceira maior
cidade do
mundo.
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