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ARTIGOS
São Paulo no divã
CONTARDO CALLIGARIS
COLUNISTA DA FOLHA
As metrópoles são histéricas.
Não é o diagnóstico de uma doença; essa é sua personalidade.
Explico. Um componente decisivo da personalidade histérica é a
convicção de ser o objeto irresistível do desejo dos outros. Ser histérico é cantar com o barbeiro de
Sevilha: "Tutti mi vogliono, tutti
mi chiamano".
As cidades nascem por necessidades comerciais ou industriais
ou como postos avançados de expansão. Mas, seja qual for sua origem, para se tornarem metrópoles, elas devem ocupar um lugar
específico de nossa mente. A metrópole começa quando uma
aglomeração de casas e gente passa a ser o cenário preferido dos
devaneios que alimentam nossos
desejos.
Aliás, o primeiro habitante honorário de qualquer metrópole é
o devaneio -de amores, prazeres, conquistas, riquezas, variedade. Sem esse primeiro cidadão, a
metrópole não vinga.
É graças a ele que a metrópole se
torna pólo de atração para o campo e a província. É graças a ele
que, em geral, ela é odiada pelos
regimes totalitários e repressivos,
que desconfiam dos cidadãos, espécie pouco conformada com seu
destino, sempre sonhando com
mudanças e liberdade.
A metrópole, domicílio preferido dos desejos (sexuais e não), é,
por isso mesmo, também a casa
das frustrações e dos atalhos corruptos ou brutais de quem quer
seu devaneio realizado já, a qualquer custo. Esse conglomerado
explosivo é, às vezes, irrespirável.
No entanto, as razões da queixa
se confundem com as razões do
charme. Vai-se para a metrópole
como alguns gostam de visitar a
zona: para respirar a intensidade
do desejo na sua forma mais
simples.
Se o que precede vale para qualquer metrópole, como se expressa
a histeria de São Paulo?
Quando visitei São Paulo pela
primeira vez, os colegas que me
recebiam me contaram que, pouco tempo antes de minha chegada, um jornalista francês acabara
de publicar, resultado de sua viagem, um artigo (em "Libération",
se me lembro direito), em que
descrevia São Paulo como "uma
cidade sem rosto". Os amigos
paulistanos mal escondiam que
adoravam esse qualificativo aparentemente pouco lisonjeiro.
Da mesma forma, muitos paulistanos gostam de afirmar que
São Paulo é uma cidade extraordinariamente feia.
Uma amiga querida disse um
dia para sua filha: "Ser paulistana,
minha filha, é um carma que deve
ser vivido com elegância; sem isso, a gente volta a ser paulistano
na próxima reencarnação".
Essa espécie de orgulho negativo não impede a certeza (compartilhada por ricos e pobres) de que
São Paulo é o sonho migratório
do Brasil, o lugar para onde querem ir retirantes sedentos e famintos, artistas em busca de um
palco e de um público, homens e
mulheres que precisam de anonimato para viver suas noites e todos aqueles e aquelas que anseiam cortar as amarras e tentar
fortuna.
A metrópole feia, sem cara, onde a vida é difícil, manifesta uma
histeria paradoxal. Não é objeto
do desejo de todos por sua beleza,
mas por sua feiúra. Seu charme
não é fácil nem imediato. É um
charme para iniciados. Até a elegância das "meninas" de São Paulo, como canta Caetano, é discreta.
O charme é este: a metrópole
que, para seduzir, não conta com
sua aparência, promete mais. Nada de sol, mar e paisagens. Não
servimos de fundo para fotos de
recordação. Cuidado, aqui, o que
você desejava pode acontecer de
verdade. É a forma extrema da sedução.
Agora, se a metrópole se propõe
como palco onde podem se realizar os devaneios e as fantasias de
cada tipo de desejo, é lógico que,
para seus habitantes, ela proponha mil cenários diferentes.
Assim, justamente por ser histérica, São Paulo é:
Depressiva, como um antigo sobrado pichado, numa rua desfigurada e quase inabitável, por ter-se tornado via de acesso a uma
marginal. Ou como qualquer rua
comercial no domingo, com as lojas fechadas.
Maníaca, como a corrida de três
peruas da Rota, das quais não se
sabe se estão atrás de alguém ou
apenas tentando se (e nos) convencer de que estão agindo.
Narcisista, como a barulhenta
parada de dois motoqueiros na
frente do bar Filial (na Vila Madalena), só o tempo necessário para
certificar-se de que suscitaram alguma inveja nos outros varões
que estão tomando chope na calçada.
Fóbica, como aquele motorista
de táxi que, no fim dos anos 80,
me disse que passava um pano
com álcool no banco traseiro
quando levava alguém para o
Emílio Ribas. Ou como a lavagem
cotidiana das calçadas das mansões.
Paranóica, como o insufilme
dos carros blindados e das guaritas de segurança ou como os cacos de vidro em cima dos muros
ao redor das casas.
Louca, como a aposta dos motoboys, que acreditam que os motoristas nunca mudarão de faixa.
Esquizofrênica, como os fragmentos que, sem organizar-se numa história, desfilam na fala entrecortada dos moradores de rua
mais agitados e perdidos. Ou como a diferença social, que parece
impossível de ser conciliada numa visão do mundo que faça algum sentido.
Obsessiva, como a vontade de
saber que Deus existe (mas não
nos escolheu) que transparece na
obstinação dos jogadores de bingo, dos apostadores do Jockey e
dos pilares das casas lotéricas. Ou
como as fórmulas encantatórias
nas igrejas de periferia.
Psicopata, como o vizinho decidido a nos impor sua música, como o bando de jovens exultantes
ao constatar o medo que inspiram, como o motorista que buzina para assustar e sustar os passantes, como o cara que tenta passar à frente na fila do cinema, como o nome "fura-fila", que alguém escolheu (haja escolha infeliz) para designar uma melhoria
do serviço público.
Dissoluta (perversa, diriam os
que entendem pouco de clínica),
como os cantos escuros do Ibirapuera à noite ou como os cinemas
do largo do Arouche. Dissoluta
também pela tensão erótica envergonhada que se insinua nas diferenças sociais excessivas, como
se essas implicassem que os poderosos podem dobrar o corpo dos
pobres ao seu capricho.
Ora, que a personalidade de
nossa metrópole lhe permita ser
cenário para todo o leque da diversidade psíquica, eis que permite o diagnóstico final. É um diagnóstico que não está nos manuais
de psicopatologia: São Paulo é
moderna.
Contardo Calligaris, 56, psicanalista, é
autor de "Terra de Ninguém" e "Cartas a
Um Jovem Terapeuta"
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