São Paulo, domingo, 23 de janeiro de 2005

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ARTIGOS

São Paulo no divã

CONTARDO CALLIGARIS
COLUNISTA DA FOLHA

As metrópoles são histéricas. Não é o diagnóstico de uma doença; essa é sua personalidade.
Explico. Um componente decisivo da personalidade histérica é a convicção de ser o objeto irresistível do desejo dos outros. Ser histérico é cantar com o barbeiro de Sevilha: "Tutti mi vogliono, tutti mi chiamano".
As cidades nascem por necessidades comerciais ou industriais ou como postos avançados de expansão. Mas, seja qual for sua origem, para se tornarem metrópoles, elas devem ocupar um lugar específico de nossa mente. A metrópole começa quando uma aglomeração de casas e gente passa a ser o cenário preferido dos devaneios que alimentam nossos desejos.
Aliás, o primeiro habitante honorário de qualquer metrópole é o devaneio -de amores, prazeres, conquistas, riquezas, variedade. Sem esse primeiro cidadão, a metrópole não vinga.
É graças a ele que a metrópole se torna pólo de atração para o campo e a província. É graças a ele que, em geral, ela é odiada pelos regimes totalitários e repressivos, que desconfiam dos cidadãos, espécie pouco conformada com seu destino, sempre sonhando com mudanças e liberdade.
A metrópole, domicílio preferido dos desejos (sexuais e não), é, por isso mesmo, também a casa das frustrações e dos atalhos corruptos ou brutais de quem quer seu devaneio realizado já, a qualquer custo. Esse conglomerado explosivo é, às vezes, irrespirável.
No entanto, as razões da queixa se confundem com as razões do charme. Vai-se para a metrópole como alguns gostam de visitar a zona: para respirar a intensidade do desejo na sua forma mais simples.
Se o que precede vale para qualquer metrópole, como se expressa a histeria de São Paulo?
Quando visitei São Paulo pela primeira vez, os colegas que me recebiam me contaram que, pouco tempo antes de minha chegada, um jornalista francês acabara de publicar, resultado de sua viagem, um artigo (em "Libération", se me lembro direito), em que descrevia São Paulo como "uma cidade sem rosto". Os amigos paulistanos mal escondiam que adoravam esse qualificativo aparentemente pouco lisonjeiro.
Da mesma forma, muitos paulistanos gostam de afirmar que São Paulo é uma cidade extraordinariamente feia.
Uma amiga querida disse um dia para sua filha: "Ser paulistana, minha filha, é um carma que deve ser vivido com elegância; sem isso, a gente volta a ser paulistano na próxima reencarnação".
Essa espécie de orgulho negativo não impede a certeza (compartilhada por ricos e pobres) de que São Paulo é o sonho migratório do Brasil, o lugar para onde querem ir retirantes sedentos e famintos, artistas em busca de um palco e de um público, homens e mulheres que precisam de anonimato para viver suas noites e todos aqueles e aquelas que anseiam cortar as amarras e tentar fortuna.
A metrópole feia, sem cara, onde a vida é difícil, manifesta uma histeria paradoxal. Não é objeto do desejo de todos por sua beleza, mas por sua feiúra. Seu charme não é fácil nem imediato. É um charme para iniciados. Até a elegância das "meninas" de São Paulo, como canta Caetano, é discreta.
O charme é este: a metrópole que, para seduzir, não conta com sua aparência, promete mais. Nada de sol, mar e paisagens. Não servimos de fundo para fotos de recordação. Cuidado, aqui, o que você desejava pode acontecer de verdade. É a forma extrema da sedução.
Agora, se a metrópole se propõe como palco onde podem se realizar os devaneios e as fantasias de cada tipo de desejo, é lógico que, para seus habitantes, ela proponha mil cenários diferentes.
Assim, justamente por ser histérica, São Paulo é:
Depressiva, como um antigo sobrado pichado, numa rua desfigurada e quase inabitável, por ter-se tornado via de acesso a uma marginal. Ou como qualquer rua comercial no domingo, com as lojas fechadas.
Maníaca, como a corrida de três peruas da Rota, das quais não se sabe se estão atrás de alguém ou apenas tentando se (e nos) convencer de que estão agindo.
Narcisista, como a barulhenta parada de dois motoqueiros na frente do bar Filial (na Vila Madalena), só o tempo necessário para certificar-se de que suscitaram alguma inveja nos outros varões que estão tomando chope na calçada.
Fóbica, como aquele motorista de táxi que, no fim dos anos 80, me disse que passava um pano com álcool no banco traseiro quando levava alguém para o Emílio Ribas. Ou como a lavagem cotidiana das calçadas das mansões.
Paranóica, como o insufilme dos carros blindados e das guaritas de segurança ou como os cacos de vidro em cima dos muros ao redor das casas.
Louca, como a aposta dos motoboys, que acreditam que os motoristas nunca mudarão de faixa.
Esquizofrênica, como os fragmentos que, sem organizar-se numa história, desfilam na fala entrecortada dos moradores de rua mais agitados e perdidos. Ou como a diferença social, que parece impossível de ser conciliada numa visão do mundo que faça algum sentido.
Obsessiva, como a vontade de saber que Deus existe (mas não nos escolheu) que transparece na obstinação dos jogadores de bingo, dos apostadores do Jockey e dos pilares das casas lotéricas. Ou como as fórmulas encantatórias nas igrejas de periferia.
Psicopata, como o vizinho decidido a nos impor sua música, como o bando de jovens exultantes ao constatar o medo que inspiram, como o motorista que buzina para assustar e sustar os passantes, como o cara que tenta passar à frente na fila do cinema, como o nome "fura-fila", que alguém escolheu (haja escolha infeliz) para designar uma melhoria do serviço público.
Dissoluta (perversa, diriam os que entendem pouco de clínica), como os cantos escuros do Ibirapuera à noite ou como os cinemas do largo do Arouche. Dissoluta também pela tensão erótica envergonhada que se insinua nas diferenças sociais excessivas, como se essas implicassem que os poderosos podem dobrar o corpo dos pobres ao seu capricho.
Ora, que a personalidade de nossa metrópole lhe permita ser cenário para todo o leque da diversidade psíquica, eis que permite o diagnóstico final. É um diagnóstico que não está nos manuais de psicopatologia: São Paulo é moderna.


Contardo Calligaris, 56, psicanalista, é autor de "Terra de Ninguém" e "Cartas a Um Jovem Terapeuta"


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