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Linha de sombra
MILTON HATOUM
ESPECIAL PARA A FOLHA
Os clichês, assim como os mitos,
viajam e proliferam. Diziam que
São Paulo era uma cidade caótica
e assustadora, um labirinto cinza
e monstruoso, a que um amazonense jamais se adaptaria. Vim
morar em São Paulo com essas
imagens na cabeça, mas minha
primeira impressão contrariou alguns desses clichês. Senti uma espécie de alívio mesclado à solidão.
Isso foi em janeiro de 1970, e o alívio tinha suas razões: eu acabara
de passar dois anos em Brasília,
onde o verde predominante não
era o da natureza, e sim o do Exército, onipresente e
ameaçador. Mas é
verdade que, em
São Paulo, a sensação de estar
num espaço urbano descomunal
persistiu por algum tempo.
Toda metrópole
tem algo de labiríntico, e, para o
recém-chegado,
perder-se na grande cidade é quase
uma rotina. São
Paulo é tentacular.
Eu não sabia onde
a cidade começava nem onde terminava, e esses limites indefinidos ou imprecisos
eram motivos de desnorteio mas
também de atração, pois Brasília
era pequena, bem delimitada e
muito vigiada. Viver no anonimato era o que eu mais buscava naquela época de tempo nublado.
O primeiro ano de vida paulistana foi áspero: não tinha amigos,
e não me adaptava ao frio, o que é
compreensível para quem nasceu
e cresceu num clima equatorial.
Além disso, Manaus ainda estava
presente na minha memória: a cidade quase mítica da infância e da
juventude, vividas intensamente
nas ruas e praças, nos balneários
diurnos (e também noturnos),
nos passeios de canoa e barco pelo rio Negro. O horizonte do rio e
da floresta era uma presença forte, e isso fazia falta em São Paulo.
E, é claro, havia uma diferença
cultural, antropológica, que acentuava o contraste com os costumes e o ritmo do lugar de origem:
a comida à base de peixe e farinha,
a infinita variedade de frutas regionais, a quentura abrasadora
nas primeiras horas da tarde, o ar
contemplativo de quem sonha
acordado, e o absoluto desprezo à
pressa, à urgência, à correria e aos
horários rígidos do trabalho cotidiano. Isso sem contar o hábito
indígena de dormir em rede, que
faz bem para o
corpo e até para
dois corpos.
Aos poucos, fui
me adaptando ao
ritmo de São Paulo e aprendi a gostar de seu tamanho excessivo.
Morei em vários
bairros -Vila
Mariana, Jabaquara, Liberdade,
Butantã, Pinheiros e Vila Madalena-, que pareciam cidades pequenas aninhadas
na metrópole:
bairros com algumas ruas calmas
e arborizadas, alinhadas por um
casario baixo. Havia uma província escondida em cada lugar, o pequeno incrustado no grande: um
pouco da minha origem na grandiosidade urbana .
Quando ingressei na faculdade
de arquitetura e urbanismo da
USP, fiz várias amizades, algumas
para sempre. A FAU era um laboratório onde se discutia muita coisa: projetos de habitação popular,
planejamento urbano, arte, política e até literatura. A utopia que
nos movia não era tão diferente
do projeto de Brasília, construída
para um futuro mais justo, mas
que já se revelava um problema
naquele momento, pois a modernização no país só alcançava, como ainda ocorre hoje, uma minoria.
Naquela época, a maior ameaça
não era a violência urbana, e sim a
repressão da ditadura, que acossava os contestadores ao regime
militar. Mesmo assim, havia mais
tempo para encontros, conversas,
trabalho e lazer. E também mais
horizonte para o olhar, pois o
campo visual era mais desimpedido e alargado. Hoje, nossos olhos
parecem mendigar um pedaço de
céu e o relevo das serras só é visível para quem mora nas alturas.
Tudo cresceu exponencialmente em São Paulo, e agora há um
medo difuso e coletivo, uma tensão latente que dificulta o convívio e abole a prática da cidadania,
que, de resto, nunca existiu no
Brasil. A industrialização não significou necessariamente melhoria
da qualidade de vida, o que se
aplica também a Manaus, cuja
população, em 25 anos, saltou de
300 mil para mais de 1,5 milhão de
habitantes.
Mas a década de 1970 em São
Paulo foi o período mais intenso,
turbulento, e talvez decisivo da
minha vida. Foi uma espécie de
"linha de sombra", título da novela de Conrad, em que o personagem vivencia um penoso rito de
passagem da juventude à maturidade. É o momento em que a
complexidade do mundo e dos
seres adquire espessura diante do
nosso olhar e da nossa consciência.
Vinte anos depois, me encontro
outra vez morando em São Paulo,
com muitas críticas à metrópole,
mas sem nostalgia do passado e
sobretudo sem arrependimento
por estar de volta mais uma vez.
Milton Hatoum, 52, é autor de "Dois Irmãos" (Cia. das Letras, 266 págs., R$
36,50) e "Relato de Um Certo Oriente"
(Cia. das Letras, 166 págs., R$ 32)
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