São Paulo, domingo, 23 de janeiro de 2005

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Linha de sombra

MILTON HATOUM
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os clichês, assim como os mitos, viajam e proliferam. Diziam que São Paulo era uma cidade caótica e assustadora, um labirinto cinza e monstruoso, a que um amazonense jamais se adaptaria. Vim morar em São Paulo com essas imagens na cabeça, mas minha primeira impressão contrariou alguns desses clichês. Senti uma espécie de alívio mesclado à solidão. Isso foi em janeiro de 1970, e o alívio tinha suas razões: eu acabara de passar dois anos em Brasília, onde o verde predominante não era o da natureza, e sim o do Exército, onipresente e ameaçador. Mas é verdade que, em São Paulo, a sensação de estar num espaço urbano descomunal persistiu por algum tempo.
Toda metrópole tem algo de labiríntico, e, para o recém-chegado, perder-se na grande cidade é quase uma rotina. São Paulo é tentacular. Eu não sabia onde a cidade começava nem onde terminava, e esses limites indefinidos ou imprecisos eram motivos de desnorteio mas também de atração, pois Brasília era pequena, bem delimitada e muito vigiada. Viver no anonimato era o que eu mais buscava naquela época de tempo nublado.
O primeiro ano de vida paulistana foi áspero: não tinha amigos, e não me adaptava ao frio, o que é compreensível para quem nasceu e cresceu num clima equatorial. Além disso, Manaus ainda estava presente na minha memória: a cidade quase mítica da infância e da juventude, vividas intensamente nas ruas e praças, nos balneários diurnos (e também noturnos), nos passeios de canoa e barco pelo rio Negro. O horizonte do rio e da floresta era uma presença forte, e isso fazia falta em São Paulo. E, é claro, havia uma diferença cultural, antropológica, que acentuava o contraste com os costumes e o ritmo do lugar de origem: a comida à base de peixe e farinha, a infinita variedade de frutas regionais, a quentura abrasadora nas primeiras horas da tarde, o ar contemplativo de quem sonha acordado, e o absoluto desprezo à pressa, à urgência, à correria e aos horários rígidos do trabalho cotidiano. Isso sem contar o hábito indígena de dormir em rede, que faz bem para o corpo e até para dois corpos.
Aos poucos, fui me adaptando ao ritmo de São Paulo e aprendi a gostar de seu tamanho excessivo. Morei em vários bairros -Vila Mariana, Jabaquara, Liberdade, Butantã, Pinheiros e Vila Madalena-, que pareciam cidades pequenas aninhadas na metrópole: bairros com algumas ruas calmas e arborizadas, alinhadas por um casario baixo. Havia uma província escondida em cada lugar, o pequeno incrustado no grande: um pouco da minha origem na grandiosidade urbana .
Quando ingressei na faculdade de arquitetura e urbanismo da USP, fiz várias amizades, algumas para sempre. A FAU era um laboratório onde se discutia muita coisa: projetos de habitação popular, planejamento urbano, arte, política e até literatura. A utopia que nos movia não era tão diferente do projeto de Brasília, construída para um futuro mais justo, mas que já se revelava um problema naquele momento, pois a modernização no país só alcançava, como ainda ocorre hoje, uma minoria.
Naquela época, a maior ameaça não era a violência urbana, e sim a repressão da ditadura, que acossava os contestadores ao regime militar. Mesmo assim, havia mais tempo para encontros, conversas, trabalho e lazer. E também mais horizonte para o olhar, pois o campo visual era mais desimpedido e alargado. Hoje, nossos olhos parecem mendigar um pedaço de céu e o relevo das serras só é visível para quem mora nas alturas.
Tudo cresceu exponencialmente em São Paulo, e agora há um medo difuso e coletivo, uma tensão latente que dificulta o convívio e abole a prática da cidadania, que, de resto, nunca existiu no Brasil. A industrialização não significou necessariamente melhoria da qualidade de vida, o que se aplica também a Manaus, cuja população, em 25 anos, saltou de 300 mil para mais de 1,5 milhão de habitantes.
Mas a década de 1970 em São Paulo foi o período mais intenso, turbulento, e talvez decisivo da minha vida. Foi uma espécie de "linha de sombra", título da novela de Conrad, em que o personagem vivencia um penoso rito de passagem da juventude à maturidade. É o momento em que a complexidade do mundo e dos seres adquire espessura diante do nosso olhar e da nossa consciência.
Vinte anos depois, me encontro outra vez morando em São Paulo, com muitas críticas à metrópole, mas sem nostalgia do passado e sobretudo sem arrependimento por estar de volta mais uma vez.


Milton Hatoum, 52, é autor de "Dois Irmãos" (Cia. das Letras, 266 págs., R$ 36,50) e "Relato de Um Certo Oriente" (Cia. das Letras, 166 págs., R$ 32)


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