São Paulo, sábado, 23 de janeiro de 1999

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DATA VENIA

Hediondos

ROBERTO DELMANTO

Segundo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira ("Novo Dicionário da Língua Portuguesa"), o termo "hediondo" tem, entre outros, os significados: "sórdido", "imundo", "repelente", "repulsivo" e "horrendo".
Em nossa legislação, ele apareceu, pela primeira vez, na Constituição da República de 1988, que, em seu artigo 5º, inciso 43, dispõe serem "insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos".
Indo além do preconizado pela Carta, a lei nº 8.072/90, em seu art. 2º, após reafirmar serem os crimes hediondos insuscetíveis de graça ou anistia, tornou-os também insuscetíveis de indulto (inc. 1, última parte), fiança e liberdade provisória (inc. 2). O parágrafo 1º desse artigo estabeleceu ainda que a pena desses delitos será cumprida em regime fechado.
No que concerne à proibição de liberdade provisória durante o processo, os doutrinadores se manifestam no sentido da sua inconstitucionalidade, posto que violadora da garantia da presunção de inocência, representando essa vedação, despida de cautelaridade, inadmissível punição antecipada. Todavia, tal posicionamento não tem encontrado guarida em nossos tribunais, com exceção de poucos e eruditos votos em sentido contrário.
Portanto, um acusado de crime hediondo, se preso em flagrante, inexistindo nulidades no respectivo auto, permanece nessa condição até, pelo menos, a prolação da sentença, na qual, se condenatória, "o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade" (parágrafo 2º do art. 2º da lei nº 8.072/90).
Quanto à proibição de progressão de regime (do fechado para o semi-aberto e deste para o aberto) pela Lei dos Crimes Hediondos, a doutrina se posiciona também pela sua inconstitucionalidade. É inegável que a individualização da pena abrange a fase de execução.
Mais recentemente, com a edição da Lei da Tortura (nº 9.455/97), que prevê para esse crime somente o início do cumprimento da pena em regime fechado (parágrafo 7º do art. 1º), não vedando, portanto, a progressão de regime, a questão se reacendeu.
Acórdãos brilhantes do STJ vêm sustentando que, se a Constituição prevê tratamento unitário para os crimes hediondos e a tortura, a permissão da progressão de regime para esta concedida não pode ser àqueles negada. Entretanto, a jurisprudência majoritária admite, até agora, o regime fechado integral para os crimes hediondos.
Assim, os condenados por esses delitos vêm cumprindo suas penas integralmente nesse regime, nas medievais e vergonhosas prisões brasileiras, no aguardo, quiçá, de uma única benesse: o livramento condicional após o cumprimento de mais de dois terços da pena (CP, art. 83, inciso 5).
Diante desse quadro, verifica-se que nossas leis, ao negarem a liberdade provisória para os acusados de crimes hediondos e a progressão de regime para os por eles condenados, têm, lamentavelmente, a pretexto de coibir os delitos hediondos, adotado práticas processuais e de execução que, descendo ao mesmo nível moral daqueles delitos, são igualmente hediondas, na acepção que nos dão os léxicos, com a agravante de seu autor ser o próprio Estado.


Roberto Delmanto, 55, é advogado criminalista. Foi vice-presidente da Associação dos Advogados de São Paulo (1992-93) e membro do Conselho Estadual de Política Criminal e Penitenciária (governo Quércia).



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