São Paulo, sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

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DEPOIMENTO

À mercê dos párias, gritos de socorro não têm timbre pessoal

ANNA VERÔNICA MAUTNER
COLUNISTA DA FOLHA

F UI ABENÇOADA por duas ameaças telefônicas: uma vez era eu que estava nas mãos dos seqüestradores e a outra, meu filho. Eram 10h da manhã de um dia de semana quando toca um telefone, um dos seis fixos em meu nome, e a minha neta diz:
"Vó, dizem que você foi seqüestrada! Minha mãe já foi para a polícia fazer B.O. Você toma cuidado!"
Nisso toca um outro dos meus múltiplos telefones, atendo e ouço uma voz tosca, nada refinada:
"Sabe onde está a Anna Verônica?" (Avisada pela minha neta, era fácil não cair na conversa). Respondo:
- Não sei, não. Por quê?
Segue-se um longo discurso sobre a Anna Verônica que estaria nas mãos deles, ameaçada de morte, se a família não fosse ao banco tirar R$ 10 mil...
- Mas eu tenho R$ 10 mil aqui. Venham buscar! -como se eu não soubesse de nada deste mundo de seqüestros e ameaças.
- Não, a senhora tem que ir no banco!
E eu reafirmava que tinha o dinheiro em casa. Confesso que achei um preço muito barato pela minha vida. Sem conhecer o script para continuar a conversa comigo, ele me transferiu para um homem mais bravo, que gritava:
- A senhora está brincando com a gente! Vamos matar a Anna Verônica! O que ela é sua?
- É minha irmã - respondi eu, candidamente.
- Quer que ela morra? Vamos fazer picadinho dela.
Cansada da gritaria, eu terminei a conversa dizendo:
- Sabe de uma coisa? Eu não gosto mesmo dela, mata, vá!
Aí ele perdeu a paciência e desligou na minha cara. Esse episódio foi no ano passado, minha filha e minha neta estavam muito preocupadas, a gente ainda não tinha a manha de olhar no bina, se era chamada do Rio ou não. Durante umas 24 horas, cuidei-me um pouquinho, depois esqueci.
Meses depois, já em 2007, já instruída por relatos pessoais e pela mídia, fui atropelada mais uma vez pelos pretensos seqüestradores. Uma e meia da manhã, toca o telefone na minha cabeceira. Atendo e ouço gritos que bem podiam ser do meu filho.
Descobri depois que grito de desespero não tem timbre pessoal, todos se parecem, conclusão que veio de conversar com outros igualmente ameaçados. Todos dizem que o grito parecia da pessoa em questão.
Esses eram mais grosseiros, a voz vinha de um fundão de humanidade que eu não conheço:
- Não vai querer salvar este fruto da sua vagina? -e outras grosserias mais grossas, referentes a partes secretas do corpo feminino. Já escolada, informada, bati o olho no bina e vi que o telefone era do Rio. Como meu filho mora muito longe, caso tivesse desaparecido de casa, sua família teria me informado bem antes de ele poder chegar ao Rio, origem do telefonema. Viva o bina!
Nesta altura eu já não sei se ter muitos telefones em meu nome é vantagem ou desvantagem. De qualquer forma, tenho na minha consciência a culpa de ter mandado me matar e de ter deixado matar o meu filho.
Como currículo está bom para o início do século 21. Afinal, mãe e filho continuam vivos. Que mais posso querer deste universo de horror?
P.S. - Os telefonemas não foram a cobrar.


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