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DEPOIMENTO
À mercê dos párias, gritos de socorro não têm timbre pessoal
ANNA VERÔNICA MAUTNER
COLUNISTA DA FOLHA
F
UI ABENÇOADA por
duas ameaças telefônicas: uma vez era eu que
estava nas mãos dos seqüestradores e a outra, meu filho.
Eram 10h da manhã de um dia
de semana quando toca um telefone, um dos seis fixos em
meu nome, e a minha neta diz:
"Vó, dizem que você foi seqüestrada! Minha mãe já foi para a polícia fazer B.O. Você toma cuidado!"
Nisso toca um outro dos
meus múltiplos telefones,
atendo e ouço uma voz tosca,
nada refinada:
"Sabe onde está a Anna Verônica?" (Avisada pela minha neta, era fácil não cair na conversa). Respondo:
- Não sei, não. Por quê?
Segue-se um longo discurso
sobre a Anna Verônica que estaria nas mãos deles, ameaçada
de morte, se a família não fosse
ao banco tirar R$ 10 mil...
- Mas eu tenho R$ 10 mil
aqui. Venham buscar! -como
se eu não soubesse de nada deste mundo de seqüestros e
ameaças.
- Não, a senhora tem que ir
no banco!
E eu reafirmava que tinha o
dinheiro em casa. Confesso que
achei um preço muito barato
pela minha vida. Sem conhecer
o script para continuar a conversa comigo, ele me transferiu
para um homem mais bravo,
que gritava:
- A senhora está brincando
com a gente! Vamos matar a
Anna Verônica! O que ela é sua?
- É minha irmã - respondi eu,
candidamente.
- Quer que ela morra? Vamos
fazer picadinho dela.
Cansada da gritaria, eu terminei a conversa dizendo:
- Sabe de uma coisa? Eu não
gosto mesmo dela, mata, vá!
Aí ele perdeu a paciência e
desligou na minha cara. Esse
episódio foi no ano passado,
minha filha e minha neta estavam muito preocupadas, a gente ainda não tinha a manha de
olhar no bina, se era chamada
do Rio ou não. Durante umas
24 horas, cuidei-me um pouquinho, depois esqueci.
Meses depois, já em 2007, já
instruída por relatos pessoais e
pela mídia, fui atropelada mais
uma vez pelos pretensos seqüestradores. Uma e meia da
manhã, toca o telefone na minha cabeceira. Atendo e ouço
gritos que bem podiam ser do
meu filho.
Descobri depois que grito de
desespero não tem timbre pessoal, todos se parecem, conclusão que veio de conversar com
outros igualmente ameaçados.
Todos dizem que o grito parecia da pessoa em questão.
Esses eram mais grosseiros, a
voz vinha de um fundão de humanidade que eu não conheço:
- Não vai querer salvar este
fruto da sua vagina? -e outras
grosserias mais grossas, referentes a partes secretas do corpo feminino. Já escolada, informada, bati o olho no bina e vi
que o telefone era do Rio. Como
meu filho mora muito longe,
caso tivesse desaparecido de
casa, sua família teria me informado bem antes de ele poder
chegar ao Rio, origem do telefonema. Viva o bina!
Nesta altura eu já não sei se
ter muitos telefones em meu
nome é vantagem ou desvantagem. De qualquer forma, tenho
na minha consciência a culpa
de ter mandado me matar e de
ter deixado matar o meu filho.
Como currículo está bom para o início do século 21. Afinal,
mãe e filho continuam vivos.
Que mais posso querer deste
universo de horror?
P.S. - Os telefonemas não foram a cobrar.
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