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São Paulo, domingo, 23 de março de 2003

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"QUARTO SETOR"

De saúde a educação, 500 entidades pobres de São Paulo atingem diretamente 222 mil pessoas com R$ 62 mi/ano

Sem dinheiro, micro-ONG atende multidão

SÉRGIO DURAN
DA REPORTAGEM LOCAL

Da sala de seu apartamento no Conjunto Habitacional Águia de Haia, extremo leste de São Paulo, a funcionária pública aposentada Maria do Socorro Alves, 61, atende a 390 famílias com programas, criados por ela mesma, de encaminhamento médico e distribuição de alimentos aos vizinhos.
Dona Socorro e a Cohab onde mora, na qual vivem 15 mil pessoas e onde não há posto de saúde ou escola, não estão nos mapas do terceiro setor brasileiro. Nem orçamento eles têm, e sim "pessoas amigas" como os feirantes e proprietários de clínicas do bairro.
À margem da filantropia brasileira, cerca de 500 organizações pobres da cidade de São Paulo como a de dona Socorro conseguem atingir multidões -muitas vezes sem movimentar dinheiro em espécie e tendo analfabetos funcionais como líderes.
A conclusão foi obtida por meio do cadastramento de lideranças de entidades no programa de capacitação em gestão de organizações sociais feito pelo Senac.
Batizado de Formatos 500, o programa visa "formatar" iniciativas que, apesar da eficiência no atendimento, são desenvolvidas no improviso. O cadastramento concluiu, por exemplo, que as 500 organizações -cem de cada região da cidade- movimentam R$ 62,4 milhões por ano, em materiais doados e em espécie.
Com esse dinheiro, as entidades conseguem atender a 222.158 pessoas diretamente e a outras 333.606 indiretamente.
Uma creche que atende diretamente a uma criança, por exemplo, beneficia a mãe, que passa a poder trabalhar, e, assim, engrossar o orçamento da família.
Para ter uma idéia do poder de fogo dessas entidades pobres, os programas sociais da Prefeitura de São Paulo consumiram R$ 250 milhões e atenderam a 179.407 famílias, no ano passado.
Já a Fundação Bradesco, a maior organização não-governamental do país segundo o ranking da Kanitz Associados, tem orçamento de R$ 586 milhões -quase dez vezes o valor movimentado pelas entidades paulistanas- e beneficia diretamente 100.772 pessoas com programas na área de educação e pesquisa.
Um dos segredos do milagre da multiplicação feito por essas organizações é o número alto de voluntários que elas mobilizam, além das pessoas que empregam. Segundo o levantamento do Senac, a divisão é de 54% de voluntários e 46% de empregados.
Dona Socorro, por exemplo, tem 60 voluntários e nenhum funcionário. "É uma juventude daqui da Cohab que me ajuda, gente que entendeu o meu sonho, o de fazer os outros acreditarem", afirma.

"Fazer acontecer"
Outra característica comum entre as 500 entidades -um mundo onde se misturam bandeiras como falta de moradia e defesa dos direitos de travestis da periferia- é o fato de terem nascido do drama pessoal da liderança.
Dona Socorro migrou de Recife (PE) há 40 anos e se viu sozinha em São Paulo, sem dinheiro e com quatro filhos para criar.
O ex-comerciante Nestor Quintos de Oliveira, 60, oferece aos 180 jovens que passam diariamente por sua Casa de Cultura Educação São Luiz, no Parque Santo Antônio, zona sul da cidade, o que nunca teve quando tinha a mesma idade -educação e cultura.
"Nasci em Chapadinho [MA], e lá só tinha roça para roçar e cama para dormir", conta. Entre outras coisas, a Casa tem 12 computadores, doados pelo governo do Estado, que servem para o programa de inclusão digital criado por ele.
"Quando a sua comunidade sofre e as pessoas passam a acreditar na sua pessoa, sabe Deus por que, você tem de fazer acontecer", diz.
A mesma motivação teve um grupo de pais de uma escola de educação especial para portadores de deficiência, na Vila Prudente (zona leste). De um ano para o outro, a Nossa Escola se viu sem o apoio financeiro que recebia de uma entidade do bairro.
A crise fez os pais descobrirem que os R$ 550 pagos por mês ao colégio não cobriam nem 50% dos custos de cada um dos 46 alunos. O jeito para mantê-lo foi criar uma associação, que passou não só a defender a instituição, mas também a educação diferenciada que ela oferece aos portadores.
Entre cursos de profissionalização e atividades culturais, a escola montou o espetáculo teatral "O Mágico de Oz", que soma 45 apresentações em escolas públicas carentes da zona leste. "Quando entro no palco e vejo o público, é uma alegria tão grande", diz Lígia Pontenza Carillo, 20, aluna da escola que faz o papel de Dorothy.
O sonho de atriz de Lígia, no entanto, impôs um quebra-cabeça aos pais que agora cuidam da saúde financeira da escola. "Lutamos contra a indiferença de outros pais e com uma infinidade de tarefas, como a elaboração de um projeto de captação de recursos, com as quais não sabemos lidar", diz Juan Carlos Figueroa, da associação que assumiu a instituição.
A busca dessas entidades por profissionalização é outro fenômeno observado pela equipe do Senac. Cerca de 1.200 se inscreveram no programa Formatos 500, que não teve nem divulgação.
"Lidamos com um universo muito heterogêneo, o das lideranças sociais de base, de líderes que não têm, às vezes, nem o dinheiro da condução para vir ao curso", diz Neusa Maria Goys, gerente da unidade do Senac que cuida dos programas para o terceiro setor.
O passado ligado à militância política ou religiosa ainda marca muitas dessas instituições, mas, segundo Sérgio de Oliveira e Silva, coordenador da Universidade Aberta do Terceiro Setor, do Senac, a busca por formação vem mudando o perfil das entidades.
"O Comunidade Solidária [programa do governo FHC", que condicionava a participação das entidades ao preenchimento de certos pré-requisitos, acabou levantando essa onda", considera.
Especialista em terceiro setor, o advogado Rubens Naves, consultor de fundações e associações, é categórico: "Essas entidades de base popular buscam se profissionalizar para continuar existindo".


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