São Paulo, domingo, 23 de abril de 2006

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De casa nova

ROBERTO DE OLIVEIRA
DÉBORA YURI

DA REVISTA DA FOLHA

A terça-feira gelada no Solar do Marquês começou cedo, com aulas de hidroginástica para idosos. Elas fazem tanto sucesso nas redondezas do hotel, em Higienópolis (centro de São Paulo), que até vizinhos da mesma faixa etária dão seus passinhos e ensaiam um relaxamento com espaguetes coloridos na piscina aquecida.
"Já comprei meu maiô, não vejo a hora de começar essas aulas", diz a carioca Alda de Paiva, 64, uma das seis moradoras fixas do condomínio para terceira idade inaugurado em setembro do ano passado, no mesmo prédio onde funcionava o hotel Eldorado.
Óculos de sol, colar, brincos, anéis dourados, tamanco, batom rosa e esmalte vermelho, ela cita as vantagens de viver ali. "Converso com gente da mesma idade, com problemas parecidos. Por exemplo, conheci uma mulher cujo marido não conseguiu se adaptar à prótese que colocou no lugar da perna. O Fernando vai pôr prótese daqui a dois meses, então já estou pensando no que fazer pra ele se adaptar..."
Fernando Pinto Gomes, 72, seu marido, passeia numa cadeira de rodas empurrada por uma funcionária do flat: fica olhando a sala de musculação, a piscina aquecida e a externa, enquanto a mulher espera o fim da limpeza diária do quarto do casal. Diabético, ele teve a perna direita amputada em janeiro e, do hospital no Rio, onde moravam, mudaram-se direto para o Solar do Marquês.
"Os médicos de São Paulo são mais eficientes, eu gosto. Ele tem um médico ótimo aqui", conta Alda. Três enfermeiros se revezam com seu marido no hotel.
Comuns em países europeus, como Alemanha e França, e principalmente nos EUA, cujos 35 mil empreendimentos hospedam 800 mil idosos, as "assisted living facilities" (residências assistidas) começam a fazer parte de uma parcela privilegiada da terceira idade paulistana, gente das classes A e B que pode pagar "aluguéis" entre R$ 4.200 e R$ 6.000 por pessoa ou um pouco mais se for casal.
São casais e viúvos, dos 60 aos 90 anos, que deixam para trás as casas em que moram, geralmente casarões ou amplos apartamentos, para viver em flats/hotéis que atendem as necessidades dos hóspedes -independentes ou semidependentes, lúcidos e com autonomia para tarefas rotineiras.

Valor sentimental
Quatro novos empreendimentos foram inaugurados em São Paulo nos últimos três anos, reflexo do crescimento da população idosa. Um dos pioneiros, o Residencial Santa Catarina, mensalidades de R$ 5.000 a R$ 6.000, inaugurado em julho de 2000, viu sua taxa de ocupação dobrar de 40% para 80% nos últimos quatro anos. Cerca de 80% de seus hóspedes são mulheres, já que elas vivem mais do que os homens.
Deixar a casa em que vivem e se desfazer da maior parte dos objetos acumulados durante toda a vida é parte da equação emocional que dificulta a aceitação dos condomínios assistidos. Para muitos, é a pior parte. "Foi triste não por uma questão material, mas sim por elas terem um enorme valor sentimental para nós", lamenta Marília Daher, 83, em seu quarto repleto de fotos da família em todos os cantos do mundo.
Há quatro meses e meio, ela e o marido, Nelson Merched Daher, 86, engrossaram a lista dos 80 moradores fixos do Santa Catarina. Até então, o casal, que vive junto há 60 anos e tem dois filhos, morava sozinho em um apartamento nos Jardins. Marília é diabética desde os 22 anos e há dois o problema se agravou, ela passou por uma cirurgia de catarata e teve deslocamento na retina.
"Perdi praticamente 90% da visão e me tornei muito dependente do Nelson", conta. "Ele estava sobrecarregado. Aqui, esse peso acabou. Temos mais tranqüilidade e liberdade."

Culpa x atenção
A relação filhos-pais é outro aspecto que conspira contra os condomínios. Nem as mordomias conseguem afastar o incômodo parentesco desses flats com os asilos, instituições quase sempre encaradas como solução apenas para os idosos mais pobres e abandonados pela família.
"Ainda há preconceito de todos os lados. O idoso que vem conhecer fala: "Eu ainda não preciso disso. Quando precisar, eu volto". E os filhos têm aquele sentimento de culpa. Mas esses filhos têm suas ocupações, deixam os idosos sozinhos por muito tempo", diz Roseli Nunes, 49, agente de eventos do Solar do Marquês.

Mudança
Clestiane Cardoso Birello, 39, diretora do Residencial Santa Catarina, acha que essa situação está começando a ficar diferente. "A decisão de mudar para cá partiu da grande maioria dos nossos hóspedes. Não foi uma imposição de filhos ou da família", afirma. "Além disso, aqui eles convivem com gente da mesma idade, conhecem gente, têm uma série de atividades", completa Roseli.
A bióloga Maria Luiza, por exemplo, tem uma agenda de fazer inveja a muita gente. Na semana passada, foi assistir a um concerto do maestro João Carlos Martins. Na última quinta-feira, estava superansiosa, com medo de fazer feio numa aula de dança.
O investimento, garante ela, vale a pena. "Fiz as contas e gastava com a manutenção da casa e os empregados o mesmo valor que pago de mensalidade."
Marília aponta, entretanto, um contra no meio dos prós. "Abate um pouco a gente ver essas pessoas tão dependentes de um enfermeiro ou acompanhante", diz.
"Quando está em casa, você ouve falar, mas aqui convive diretamente com essa realidade."
Para Cássio Bottino, coordenador do projeto Terceira Idade do Instituto de Psiquiatria da USP o ambiente traz efeitos. "Esses lugares reproduzem uma situação artificial e têm uma característica que não é saudável", diz. "Num ambiente cercado por muita gente com idade avançada, as chances de acontecerem problemas de saúde e de incapacidade se agravam e tudo isso tem um reflexo psicologicamente negativo."
Segundo Bottino, o fato de o idoso estar num ambiente familiar, cercado por seus objetos pessoais que o remetem a seus referenciais históricos, funciona como uma continuidade do processo natural de envelhecimento, da vida. "Cuidar de netos ou assumir tarefas são atividades positivas, sem que ocorra abusos, claro. Essa capacidade de cuidar é extremamente estimulante. Faz com que a pessoa se sinta útil", diz.
A questão, porém, é acomodar o ambiente ideal ao possível. "Claro que o melhor lugar é a nossa casa", concorda Clineu de Mello Almada Filho, 45, geriatra do hospital Albert Einstein e professor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). "Desde que ali existam boas condições de vida. Só vai para hotel quem precisa, ou seja, quem não consegue se manter em casa, por falta de estrutura física ou de recursos humanos, quando a família não segura a barra. E idosos muito debilitados não estariam nesses hotéis, e sim numa clínica, que é diferente", observa o professor.
A viúva inglesa Jane Thompson, 69, que divide seu tempo entre São Paulo e Londres, mora no Solar do Marquês desde setembro. Talvez seja das poucas moradoras que faça jus ao "flyer" do hotel, com uma foto de um sorridente e saudável casal de velhinhos com pulôveres elegantes. Mas, como todo mundo sabe, a vida é sempre mais simples na propaganda.


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