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De casa nova
ROBERTO DE OLIVEIRA
DÉBORA YURI
DA REVISTA DA FOLHA
A terça-feira gelada no Solar do
Marquês começou cedo, com aulas de hidroginástica para idosos.
Elas fazem tanto sucesso nas redondezas do hotel, em Higienópolis (centro de São Paulo), que
até vizinhos da mesma faixa etária
dão seus passinhos e ensaiam um
relaxamento com espaguetes coloridos na piscina aquecida.
"Já comprei meu maiô, não vejo
a hora de começar essas aulas",
diz a carioca Alda de Paiva, 64,
uma das seis moradoras fixas do
condomínio para terceira idade
inaugurado em setembro do ano
passado, no mesmo prédio onde
funcionava o hotel Eldorado.
Óculos de sol, colar, brincos,
anéis dourados, tamanco, batom
rosa e esmalte vermelho, ela cita
as vantagens de viver ali. "Converso com gente da mesma idade,
com problemas parecidos. Por
exemplo, conheci uma mulher
cujo marido não conseguiu se
adaptar à prótese que colocou no
lugar da perna. O Fernando vai
pôr prótese daqui a dois meses,
então já estou pensando no que
fazer pra ele se adaptar..."
Fernando Pinto Gomes, 72, seu
marido, passeia numa cadeira de
rodas empurrada por uma funcionária do flat: fica olhando a sala de musculação, a piscina aquecida e a externa, enquanto a mulher espera o fim da limpeza diária do quarto do casal. Diabético,
ele teve a perna direita amputada
em janeiro e, do hospital no Rio,
onde moravam, mudaram-se direto para o Solar do Marquês.
"Os médicos de São Paulo são
mais eficientes, eu gosto. Ele tem
um médico ótimo aqui", conta
Alda. Três enfermeiros se revezam com seu marido no hotel.
Comuns em países europeus,
como Alemanha e França, e principalmente nos EUA, cujos 35 mil
empreendimentos hospedam 800
mil idosos, as "assisted living facilities" (residências assistidas) começam a fazer parte de uma parcela privilegiada da terceira idade
paulistana, gente das classes A e B
que pode pagar "aluguéis" entre
R$ 4.200 e R$ 6.000 por pessoa ou
um pouco mais se for casal.
São casais e viúvos, dos 60 aos
90 anos, que deixam para trás as
casas em que moram, geralmente
casarões ou amplos apartamentos, para viver em flats/hotéis que
atendem as necessidades dos hóspedes -independentes ou semidependentes, lúcidos e com autonomia para tarefas rotineiras.
Valor sentimental
Quatro novos empreendimentos foram inaugurados em São
Paulo nos últimos três anos, reflexo do crescimento da população
idosa. Um dos pioneiros, o Residencial Santa Catarina, mensalidades de R$ 5.000 a R$ 6.000,
inaugurado em julho de 2000, viu
sua taxa de ocupação dobrar de
40% para 80% nos últimos quatro
anos. Cerca de 80% de seus hóspedes são mulheres, já que elas vivem mais do que os homens.
Deixar a casa em que vivem e se
desfazer da maior parte dos objetos acumulados durante toda a vida é parte da equação emocional
que dificulta a aceitação dos condomínios assistidos. Para muitos,
é a pior parte. "Foi triste não por
uma questão material, mas sim
por elas terem um enorme valor
sentimental para nós", lamenta
Marília Daher, 83, em seu quarto
repleto de fotos da família em todos os cantos do mundo.
Há quatro meses e meio, ela e o
marido, Nelson Merched Daher,
86, engrossaram a lista dos 80 moradores fixos do Santa Catarina.
Até então, o casal, que vive junto
há 60 anos e tem dois filhos, morava sozinho em um apartamento
nos Jardins. Marília é diabética
desde os 22 anos e há dois o problema se agravou, ela passou por
uma cirurgia de catarata e teve
deslocamento na retina.
"Perdi praticamente 90% da visão e me tornei muito dependente
do Nelson", conta. "Ele estava sobrecarregado. Aqui, esse peso
acabou. Temos mais tranqüilidade e liberdade."
Culpa x atenção
A relação filhos-pais é outro aspecto que conspira contra os condomínios. Nem as mordomias
conseguem afastar o incômodo
parentesco desses flats com os asilos, instituições quase sempre encaradas como solução apenas para os idosos mais pobres e abandonados pela família.
"Ainda há preconceito de todos
os lados. O idoso que vem conhecer fala: "Eu ainda não preciso disso. Quando precisar, eu volto". E
os filhos têm aquele sentimento
de culpa. Mas esses filhos têm
suas ocupações, deixam os idosos
sozinhos por muito tempo", diz
Roseli Nunes, 49, agente de eventos do Solar do Marquês.
Mudança
Clestiane Cardoso Birello, 39,
diretora do Residencial Santa Catarina, acha que essa situação está
começando a ficar diferente. "A
decisão de mudar para cá partiu
da grande maioria dos nossos
hóspedes. Não foi uma imposição
de filhos ou da família", afirma.
"Além disso, aqui eles convivem
com gente da mesma idade, conhecem gente, têm uma série de
atividades", completa Roseli.
A bióloga Maria Luiza, por
exemplo, tem uma agenda de fazer inveja a muita gente. Na semana passada, foi assistir a um concerto do maestro João Carlos
Martins. Na última quinta-feira,
estava superansiosa, com medo
de fazer feio numa aula de dança.
O investimento, garante ela, vale a pena. "Fiz as contas e gastava
com a manutenção da casa e os
empregados o mesmo valor que
pago de mensalidade."
Marília aponta, entretanto, um
contra no meio dos prós. "Abate
um pouco a gente ver essas pessoas tão dependentes de um enfermeiro ou acompanhante", diz.
"Quando está em casa, você ouve falar, mas aqui convive diretamente com essa realidade."
Para Cássio Bottino, coordenador do projeto Terceira Idade do
Instituto de Psiquiatria da USP o
ambiente traz efeitos. "Esses lugares reproduzem uma situação artificial e têm uma característica
que não é saudável", diz. "Num
ambiente cercado por muita gente com idade avançada, as chances de acontecerem problemas de
saúde e de incapacidade se agravam e tudo isso tem um reflexo
psicologicamente negativo."
Segundo Bottino, o fato de o
idoso estar num ambiente familiar, cercado por seus objetos pessoais que o remetem a seus referenciais históricos, funciona como uma continuidade do processo natural de envelhecimento, da
vida. "Cuidar de netos ou assumir
tarefas são atividades positivas,
sem que ocorra abusos, claro. Essa capacidade de cuidar é extremamente estimulante. Faz com
que a pessoa se sinta útil", diz.
A questão, porém, é acomodar
o ambiente ideal ao possível.
"Claro que o melhor lugar é a nossa casa", concorda Clineu de Mello Almada Filho, 45, geriatra do
hospital Albert Einstein e professor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). "Desde que
ali existam boas condições de vida. Só vai para hotel quem precisa, ou seja, quem não consegue se
manter em casa, por falta de estrutura física ou de recursos humanos, quando a família não segura a barra. E idosos muito debilitados não estariam nesses hotéis, e sim numa clínica, que é diferente", observa o professor.
A viúva inglesa Jane Thompson,
69, que divide seu tempo entre
São Paulo e Londres, mora no Solar do Marquês desde setembro.
Talvez seja das poucas moradoras
que faça jus ao "flyer" do hotel,
com uma foto de um sorridente e
saudável casal de velhinhos com
pulôveres elegantes. Mas, como
todo mundo sabe, a vida é sempre
mais simples na propaganda.
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