São Paulo, domingo, 23 de julho de 2000


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OCUPAÇÃO ASIÁTICA
Comunidade é integrada por 17 imigrantes, donos de 3 pastelarias nos melhores pontos da favela carioca
Chineses invadem "área nobre" da Rocinha

ISABEL CLEMENTE
DA SUCURSAL DO RIO

Alunos da quarta série do ensino fundamental de uma escola particular da Rocinha conversam sobre astrologia. A professora pergunta o signo de cada um. As crianças riem quando o mais calado de todos responde "dragão".
A resposta veio de Chen Canhong, 15, um dos 17 imigrantes que formam a pequena e inusitada comunidade chinesa na Rocinha, a maior e a mais nordestina das favelas do Rio.
Os chineses, à exceção das crianças que estão na escola, mal falam o português. Mas já controlam três pastelarias com nomes bem cariocas nos melhores pontos da Rocinha, a Via Ápia e o Largo do Boiadeiro.
A simples presença de Chen e sua irmã, Peimei, 9, alterou a rotina das suas turmas. "Depois de explicar para os colegas, curiosos, o que é o horóscopo chinês, Chen se sentiu mais importante e passou a se soltar mais", conta a professora Kátia Cristina Alves de Oliveira, 23, do Instituto Metodista Suzana Wesley. As aulas passaram a englobar também a comparação de culturas, de costumes e de tradições.
Na comparação, a China ainda ganha para Chen, que diz preferir a vida que levava lá, no campo. Mas a opinião é logo abrandada pelos seus novos prazeres no Rio. A relutância inicial em participar das aulas de educação física na escola se transformou numa verdadeira paixão pelo futebol. Além das peladas na praia de São Conrado, Chen treina semanalmente no Flamengo.

McChina
A pequena rede de pastelarias ficou conhecida como McChina, apelido alimentado por um boato. Durante as obras no armazém que cedeu lugar à pastelaria mais antiga dali, a do Largo do Boiadeiro, que completa um ano mês que vem, falava-se na vinda de uma filial do McDonald's.
Após a reforma, surgiu a lanchonete de Chan Canhong, 42, o pai de Chen e Peimei. Três meses depois, Canhong inaugurou outra lanchonete, 24 horas, batizada de Zuzu Angel. Menos tempo ainda se passou até um conterrâneo -que só se identifica como Ruan- abrir uma igual até nos detalhes da decoração.
Um quarto imigrante chinês enveredou pelo mesmo caminho este ano, mas fechou em menos de três meses, contam os moradores. Provavelmente sucumbiu à concorrência, já que os quatro estabelecimentos não têm nem 200 metros de distância entre si.
A onda de investimentos asiáticos deu um tempo, mas a competição internacional afetou boa parte dos comerciantes do mesmo ramo. A primeira pastelaria começou vendendo um pastel e um suco por R$ 0,50.
Dona Beth, proprietária há 25 anos de uma pastelaria vizinha à dos chineses, no Largo do Boiadeiro, diz que quase faliu. Pediu a ajuda da irmã para vender tortas e empadões e tentar segurar a freguesia mais escassa. A estratégia funcionou até certo ponto. Dona Beth está convencida de que nunca mais terá o volume de vendas anterior à chegada dos chineses.
Canhong não cita números, mas o movimento não nega: o negócio vai muito bem. Não é à toa que não pretende sair dali. "Vou ficar direto. Aqui bom. China ruim", resume, quase enrubescendo, depois de ceder à insistência da reportagem.
O vendedor de rua Carlito Vieira Silva se diz um fã. Come pelo menos dois pastéis por dia. "Aqui tem muito paraibano, pernambucano e cearense, quando chegou um monte de chinês (sic) falando chinês, foi muito diferente, né?", diz ele, um cearense com 15 anos de Rocinha.
Chan Canhong mora com a mulher, os dois filhos, a cunhada, o concunhado e os dois filhos num apartamento em cima da pastelaria principal.
Ele chegou pela primeira vez ao Brasil há 20 anos, depois dos pais. O resto da família veio há seis anos, voltou para a China e retornou há cerca de três meses, direto para a Rocinha.
A idéia de se mudar para a favela surgiu com a sugestão do corretor Lauro Lemos.
Chan queria vender a pastelaria da praça da Bandeira (zona norte) e ir para um ponto melhor. Levantados os dados sócio-econômicos do bairro, onde já há 1.350 estabelecimentos comerciais, Chan concordou.
Uma loja no Largo do Boiadeiro não sai por menos de R$ 80 mil, segundo informações do mercado imobiliário local. Segundo Lemos, os chineses poderiam estar em bons pontos em outros bairros mais nobres do Rio.
A família Canhong veio de Cantão, cidade que leva o mesmo nome da província localizada no sul da República Popular da China, próxima a Hong Kong. Falam o cantonês e levavam uma vida agrária antes de vir para o Brasil.
Chan diz querer tirar a cidadania brasileira, objetivo do qual estará longe enquanto não tiver fluência no português, por se tratar de um pré-requisito do Estatuto do Estrangeiro.
Enquanto isso, Chan, sua família e os empregados vão se entendendo por meio de mímica, e de uma mistura do chinês com português. "Já entendo chinês", arrisca um funcionário da pastelaria. "E como é pastel?", quer saber a repórter. "Passitel", solta.

Associação
No Rio de Janeiro, boa parte da comunidade se reúne através da Associação Cultural Chinesa do Rio, que possui cerca de mil integrantes cadastrados. Os eventos mais marcantes são a comemoração do ano novo chinês, que geralmente coincide com o calendário do Carnaval, e o dia da independência, que é celebrado em 1º de outubro.


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