São Paulo, sábado, 23 de setembro de 2000

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LETRAS JURÍDICAS

De embriões e clonações

WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

É complicado tratar do destino dos embriões e da clonação de seres humanos, criados em laboratório ou em clínicas de reprodução assistida, independentemente da relação biológica entre as pessoas que os geraram. A complicação resulta do envolvimento do tema com convicções religiosas e morais, cuja força é justamente expressiva, mas dificulta a serenidade do debate.
Pensemos nesse embrião. Consiste na união, mediante procedimentos técnicos, do sêmen masculino com o óvulo feminino, dando origem a um projeto de gente (eis o embrião), que poderá viabilizar-se se implantado, com outras técnicas, igualmente científicas, em ventre de mulher. Ela o gestará, tendo ou não tendo liame familiar ou de sangue com o nascituro (aquele que vai nascer). Trata-se de metodologia aceita, há anos, no universo científico e social, em cujo uso profissionais brasileiros têm tido destaque.
O debate pega fogo quando se trata da possibilidade de o embrião ser guardado em temperaturas ultrabaixas, para aproveitamento posterior (tendo alguma semelhança com os bancos de sangue) ou de avaliar a hora de descartar-se dele. A agitação das manchetes se ampliou quando se admitiu, na Inglaterra, até a possibilidade da clonagem do embrião, quando necessária para desenvolver novos órgãos, sadios e em boa forma, destinados aos transplantes e, assim, a salvar vidas. Confesso, enquanto trabalhador do direito, que a clonagem me assusta, pois subverte conceitos jurídicos milenares. Reconheço as boas possibilidades dela resultantes, com a criação de novos tratamentos, mas não se podem esquecer os perigos da má utilização, dramatizados em mais de uma obra de ficção, agora que parece próxima sua aplicação prática.
Voltando aos embriões, quer-se saber se é legalmente possível e eticamente aceitável que sejam congelados para sua manutenção, destinados à utilização reprodutiva ou a experiências científicas, e posteriormente destruídos, quando não forem usados. Se o embrião for um ser humano, sua morte constituirá verdadeiro homicídio. Se tiver alma, como crêem muitos, será insuportável heresia. Pensada a questão em termos constitucionais, há o parágrafo 4º do artigo 199 da Carta Magna, pelo qual -embora não se refira ao mesmo assunto- a lei deve dispor sobre condições e requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas. Os fins permitidos são enunciados com largueza, pois compreendem o transplante, a pesquisa e o tratamento. O sangue pode ser coletado para transfusão e para processamento de derivados. Nem na norma constitucional nem na lei ordinária (nº 9.434/97) há disposições expressas a respeito da natureza dos embriões e de sua destruição. Na minha convicção religiosa e científica, digo ao leitor que o embrião não é um ser humano. A condição humana decorre do ventre da mulher, quando se torna -como diz o Código Civil- nascituro (se o leitor quiser ampliar sua visão, leia "Tutela Civil do Nascituro", de Silmara Chinelato e Almeida, Saraiva, 380 páginas, que defende posição diversa). Fora do ventre, no meu entender, o embrião é peça de laboratório, expectativa de vida, mas não vida. Destruí-lo não é crime, nem assim deve ser considerado. A questão tem tantos lados que o debate se abre a todos. Estamos, nestes tempos conturbados, em mundo novo, diferente do que existiu desde o big-bang. Foi nosso destino testemunhar e sofrer os efeitos da mudança. Tratemos de enfrentá-la.


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