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São Paulo, domingo, 23 de novembro de 2003

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DANUZA LEÃO

Janelas abertas

Nada como o tempo para que se valorize o passado, aquele que, quando era presente, parecia tão bobo. Quantas mulheres não se arrependem de terem largado os seus maridos na ilusão de uma vida mais trepidante, quantos homens não caem de cabeça em uma vida de trabalho alucinante da qual não podem mais sair -não têm nem tempo de pensar na possibilidade-, para poderem ter um carro melhor, um apartamento fantástico, mulheres inacreditáveis. Um dia eles se lembram do passado e pensam "ah, se eu soubesse" -mas aí já foi.
Quem mora no interior sonha com a cidade grande, e um dia, muitos anos depois, se lembra, assim, por nada, de sua infância, faz uma comparação com a de seus filhos e chega à conclusão de que foi muito feliz, muito mais que eles.
Até os dez anos morei em Vitória, na Praia do Canto. Não existiam casas de ricos, nem meu pai era rico, e na frente da casa não havia jardim: umas plantinhas cresciam por conta própria e só. Minha casa era de gente normal e tão perto da praia que o chão do quintal não era de terra, mas de areia. Umas árvores de frutas -mangueiras, goiabeiras, cajueiros e pitangueiras- e o mar, que era a nossa liberdade. Nas férias, íamos à praia de manhã cedo, e às 11h já estávamos de volta para tomar banho e almoçar. O cabelo era lavado todos os dias com sabonete -não havia xampu-, saíamos do banho fresquinhas e cheirosas, e se o sol havia queimado muito e a pele ardia, se passava nas costas e no nariz polvilho misturado com álcool -não havia ainda Caladryl. Um vestidinho de algodão com florzinhas, feito em casa por uma tia -quem não teve uma tia que sabia costurar?-, e pé no chão. Eu tinha um vestido para botar nos domingos -não me lembro para ir aonde- e sapatos eram só dois, um para o colégio e um "de sair", só um.
Andar descalça era muito bom, e quando se pegava bicho-de-pé era um acontecimento, já que não acontecia nada mesmo. O pé começava a coçar, e a tia -a que sabia costurar- botava os óculos, pegava uma agulha, passava no álcool, acendia um fósforo (para desinfetar) e começava a furar a pele mais grossa para tentar tirar o bicho inteiro. Quando conseguia, era uma festa da qual a família inteira participava -e da família faziam parte as empregadas, que também andavam descalças.
Nós, as crianças, vivíamos inventando moda -umas modas tão bobas, meu Deus.
Pedíamos para comer com a mão, o que significava misturar arroz com feijão e farinha, fazer um bolinho e botar na boca sem usar os talheres; mas isso, só às vezes. Outra invenção era pedir para dormir no chão, isto é, em cima de um lençol no chão duro. Só para lembrar: naquele tempo, não existiam nem revistinhas em quadrinhos, nem liquidificador, nem telefone, e quando a galinha botava um ovo, ia todo mundo ao galinheiro para ver. E ainda tínhamos, luxo dos luxos, um galinho garnizé que era o xodó da casa.
Às vezes, alguém fazia uns biscoitos, e parte da massa era para as crianças fazerem os seus próprios. A forma era sempre a mesma: uma lagartixa, cujos olhos eram de feijão preto.
Só para lembrar: não tinha televisão, ninguém tinha a chave da casa e à noite não se fazia nada, a não ser esperar a hora de dormir.
A cama era patente, estreitinha, o colchão de crina, o travesseiro de paina; dormíamos com as janelas e portas abertas, para o ar correr; e esta história, contada hoje, parece inventada -só que não foi.


E-mail - danuza.leao@uol.com.br


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