São Paulo, segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

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História pessoal vai embora com enxurrada

Lama e chuva forte fazem desaparecer cartas de amor, álbuns de fotos, joias de família, documentos e honrarias

Sobreviventes veem parte de suas memórias sumirem no rastro de destruição deixado pelas chuvas no Rio

VINÍCIUS QUEIROZ GALVÃO
ENVIADO ESPECIAL A TERESÓPOLIS

Em 85 anos, o aposentado Silvestre Rodrigues do Amaral diz nunca ter tido tamanho prejuízo. Com a casa, destruída na tragédia que atingiu o Rio, a enxurrada levou um bem imaterial que não tem mais como recuperar: a memória da família.
Foram-se na chuva álbuns de fotos, registros, documentos, transcrições e títulos conquistados ao longo da vida que contam a história de cinco gerações dos Amaral.
Perdeu, por exemplo, as cartas de amor trocadas com a mulher, Isaura, lembranças da época em que declarações e namoros desenrolavam-se pelo correio postal. Na última quinta-feira, Silvestre voltou pela primeira vez à casa arruinada para tentar recuperar, não a geladeira, o micro-ondas ou a TV de tela plana -tudo já estragado pela lama-, mas algumas dessas recordações.
Do barro, conseguiu retirar, com a ajuda do neto Bruno Sivelle Teixeira do Amaral, 33, um quadro com um retrato antigo de seu pais.
Na hora da chuva, o aposentado teve tempo apenas de correr com a mulher para o segundo andar de casa, de onde viu toda a destruição.
Na manhã seguinte, antes de os bombeiros chegarem ao bairro de Campo Grande, um dos mais devastados e onde morava, teve ele próprio de retirar dois corpos trazidos pela enxurrada para dentro de sua casa.
"Perdemos até joias de família, como um anel que pertencia à minha sogra e fora passado à minha mulher, que deu à nossa filha, que agora estava com a minha neta e que seria dado à minha bisneta. É de um valor emocional que dinheiro nenhum no mundo compra."
"Essas pessoas perderam também a identidade. É uma experiência dolorosa e de difícil superação, porque são lembranças que não se recuperam mais", diz Humberto Verona, presidente do Conselho Federal de Psicologia.
No Caleme, outro bairro de Teresópolis devastado pela chuva, o militar da reserva Vicente José de Melo, 78, lamenta a perda das medalhas e condecorações que recebera ao longo da carreira.
"Eram o orgulho da minha vida. Cada uma delas tinha uma história por trás. Agora não tenho mais lembranças. Não tenho mais o que mostrar aos meus netos", diz.

DOCUMENTOS
Perdidos também foram os documentos pessoais. A fila para tirar um novo RG, CPF, carteira de trabalho, título de eleitor ou habilitação levava dois dias em Teresópolis.
Cinco dias depois da chuva, um trailer foi montado no Pedrão, o ginásio dos desabrigados. Em uma semana, 500 segundas vias de identidade haviam sido emitidas.
"Estava ajudando como voluntária. Tinha até esquecido disso", diz a professora Eliseth Cerqueira, na fila para tirar documentos.
"Voltei para recuperar alguma coisa e não achei nada, na minha casa só tem lama.
Não tenho mais registro da família. Se tivesse voltado na hora da chuva, teria morrido", afirma o açougueiro Eliésio de Almeida Leite, à espera do RG, CPF, carteira de trabalho, título de eleitor e certidão de nascimento.
"Além da memória, perdi a cidadania. Sem os documentos, eu não existo. Não consigo sequer sacar dinheiro no banco", diz o comerciante Carlos Eduardo Araújo.

FOLHA.com
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