São Paulo, quinta-feira, 24 de fevereiro de 2005

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PASQUALE CIPRO NETO

"Quando o Sol se for, meu amor..."

Dia desses, enquanto esperava o semáforo verde, ouvi um grupo de jovens cantarolar "Quando o Sol se For", sucesso da banda Detonautas Roque Clube.
Animadíssimos, os meninos transbordavam de um bar, ou seja, ocupavam a calçada e o leito carroçável contíguos. Passei por lá justamente quando entoavam o refrão (que é o próprio título da canção). Notei que vários deles trocavam "for" por "pôr", ou seja, cantavam "Quando o Sol se pôr".
Pois era aí que eu queria chegar. Deixando de lado o fato de que na letra da canção a forma empregada é mesmo "for", parece cabível discutir a opção dos jovens pela forma "pôr". De início, convém deixar claro que, na língua padrão, essa forma seria substituída por "puser" ("Quando o Sol se puser").
Temos aí uma flexão do futuro do subjuntivo, tempo que deriva do pretérito perfeito do indicativo. O caminho mais curto (há outros) para que se chegue à forma padrão da primeira pessoa do singular do futuro do subjuntivo de QUALQUER verbo da língua portuguesa consiste em apanhar a terceira pessoa do plural do pretérito perfeito ("puseram", no caso) e eliminar as duas últimas letras (que são sempre "am").
Trocando em miúdos: "puseram" - "am" = "puser"; "fizeram" - "am" = "fizer"; "foram" - "am" = "for"; "vieram" - "am" = "vier"; "viram" - "am" = "vir" (e assim por diante). A esta altura, não custa conjugar integralmente o futuro do subjuntivo de um desses verbos. Que tal "vir"? Vamos lá: "quando/se eu vier, quando/se tu vieres, quando/se ele/ela/você vier, quando/se nós viermos, quando/se vós vierdes, quando/se eles/elas/vocês vierem".
Talvez seja bom pedir a você, caro leitor, que volte ao parágrafo anterior e observe a forma "vir", do futuro do subjuntivo do verbo "ver" ("quando/se eu vir, quando/se tu vires, quando/se ele/ela/ você vir..."). Não é por acaso que a bela canção "Bem-Querer", de Chico Buarque, começa assim: "Quando meu bem-querer me vir, estou certa que há de vir atrás". O primeiro "vir" é do verbo "ver"; o segundo é o próprio infinitivo do verbo "vir".
Também não é por acaso que nos versos de "Haiti" (escritos por Caetano Veloso) se encontra esta passagem: "E na TV se você vir um deputado em pânico...".
Mas voltemos à cantoria da garotada, ou seja, à troca de "for" por "pôr". Como vimos, se o verbo fosse "pôr", a forma adequada ao padrão culto da língua seria "puser". O emprego de "pôr" se explica pela "regularização" da flexão, ou seja, pela conjugação do verbo como se ele fosse regular.
Tradução: como o futuro do subjuntivo de boa parte dos verbos começa com uma forma igual à do infinitivo (cantar: quando/se eu cantar; beber: quando/se eu beber; agir: quando/se eu agir), muitos falantes acabam seguindo esse modelo quando conjugam verbos irregulares, como "pôr" (e derivados), "ter" (e derivados), "ver" (e derivados), "vir" (e derivados), "trazer", "fazer" etc.
O resultado dessa "regularização" é o emprego (muito comum) de formas como "Se você manter a calma", "Se ele não repor a mercadoria" ou "Se o presidente não intervir". Na língua padrão, teríamos, respectivamente, "Se você mantiver a calma", "Se ele não repuser a mercadoria" e "Se o presidente não intervier". É isso.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras.

E-mail - inculta@uol.com.br


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