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PASQUALE CIPRO NETO
"Quem tem boca vai a Roma"
Quem tem boca tem o sagrado direito de ir a Roma, mas é melhor deixar em casa o inadequado acento grave
NÃO, NÃO, CARO LEITOR, não
vou me meter a explicar a
origem do famoso dito, que,
por sinal, não sei qual é. Há quem jure que a frase original era "Quem
tem boca vaia Roma", mas isso não
muda em nada o preço do feijão ou o
valor da propina para que se façam
"pontes" que vão do nada ao nada.
O fato é que, dia desses, uma emissora de televisão exibiu o filme "Sabrina vai a Roma". Na tela, no início
de pelo menos uma das partes, o nome do filme apareceu com um indesejável acento indicador de crase
("Sabrina vai à Roma"). No mesmo
dia, em outra emissora, um telejornal noturno estampou equívoco
semelhante. Como "uma imagem
diz mais que mil palavras...".
O que quero dizer é que o leitor
talvez não imagine a força que tem
a palavra impressa, seja num livro,
jornal, cartaz ou placa pública, seja
numa tela de TV ou de cinema. O
escrito fica impregnado na memória e, quando é necessário grafar,
vem à tona o que lá se fixou.
No caso do emprego do acento
grave, ou seja, do acento indicador
de crase, a quantidade de exemplos
de "equívocos" é particularmente
"assustadora" e, claro, reveladora
de que algo não vai bem nessa história. Para não deixar dúvida: o ensino e o aprendizado desse tópico
da língua vão mal, muito mal.
Mãos à obra: a) "crase" vem do
grego e significa "ação de misturar", "mistura", "fusão"; b) ao pé da
letra, coca-cola com rum, leite com
groselha e gasolina com álcool são
exemplos de crase; c) em gramática, quando se fala de crase, fala-se
da fusão de duas vogais iguais; d)
em palavras como "crer", "ler",
"ter", "dor", "cor" e em tantas outras ocorreu crase; e) "ler", por
exemplo, na evolução do latim ("legere") para o português já foi "leer"
(como se manteve em espanhol).
A lista poderia ir mais longe,
mas, para ir ao ponto final, convém
dizer que, no português moderno,
o acento grave é empregado essencialmente para marcar a fusão da
preposição "a" com um segundo
"a", que quase sempre é artigo
(mas que nem sempre é artigo).
Em "Quem tem boca (ou "Sabrina') vai a Roma", por exemplo, o
"a" que antecede "Roma" não pode
receber acento grave por uma razão muito simples: não ocorre crase, ou seja, o "a" não resulta da fusão de coisa alguma. Quem tem boca vai a algum lugar. E chega de "a"!
O topônimo (ou seja, nome próprio
de lugar) "Roma" não aceita artigo.
Ninguém diz que gosta "da Roma"
ou que "Ele nasceu na Roma", diz?
Sim, sim, pode-se dizer que Fulano nasceu na Roma, se o assunto
for futebol (determinado jogador é
cria da Roma, time pelo qual jogou
o grande Falcão). Em se tratando
da monumental cidade, só se nasce
"na" Roma ou se gosta "da" Roma
quando se fala de uma particularidade da Cidade Eterna ("Isso vem
da Roma dos imperadores"; "Ele
nasceu na Roma dos Césares").
Sabrina e quem mais tiver boca
vão a Roma, sem acento grave no
"a", caro leitor. Sim, nesse caso o
acento também não mudaria o preço do feijão ou o valor da propina
de impolutos dignitários, mas o conhecimento da mecânica do sistema impede, por exemplo, que se
grafe "escrever à Saramago" (construção possível) quando se quer
"escrever a Saramago". É isso.
inculta@uol.com.br
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