São Paulo, quinta-feira, 24 de maio de 2007

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PASQUALE CIPRO NETO

"Quem tem boca vai a Roma"

Quem tem boca tem o sagrado direito de ir a Roma, mas é melhor deixar em casa o inadequado acento grave

NÃO, NÃO, CARO LEITOR, não vou me meter a explicar a origem do famoso dito, que, por sinal, não sei qual é. Há quem jure que a frase original era "Quem tem boca vaia Roma", mas isso não muda em nada o preço do feijão ou o valor da propina para que se façam "pontes" que vão do nada ao nada.
O fato é que, dia desses, uma emissora de televisão exibiu o filme "Sabrina vai a Roma". Na tela, no início de pelo menos uma das partes, o nome do filme apareceu com um indesejável acento indicador de crase ("Sabrina vai à Roma"). No mesmo dia, em outra emissora, um telejornal noturno estampou equívoco semelhante. Como "uma imagem diz mais que mil palavras...".
O que quero dizer é que o leitor talvez não imagine a força que tem a palavra impressa, seja num livro, jornal, cartaz ou placa pública, seja numa tela de TV ou de cinema. O escrito fica impregnado na memória e, quando é necessário grafar, vem à tona o que lá se fixou.
No caso do emprego do acento grave, ou seja, do acento indicador de crase, a quantidade de exemplos de "equívocos" é particularmente "assustadora" e, claro, reveladora de que algo não vai bem nessa história. Para não deixar dúvida: o ensino e o aprendizado desse tópico da língua vão mal, muito mal.
Mãos à obra: a) "crase" vem do grego e significa "ação de misturar", "mistura", "fusão"; b) ao pé da letra, coca-cola com rum, leite com groselha e gasolina com álcool são exemplos de crase; c) em gramática, quando se fala de crase, fala-se da fusão de duas vogais iguais; d) em palavras como "crer", "ler", "ter", "dor", "cor" e em tantas outras ocorreu crase; e) "ler", por exemplo, na evolução do latim ("legere") para o português já foi "leer" (como se manteve em espanhol).
A lista poderia ir mais longe, mas, para ir ao ponto final, convém dizer que, no português moderno, o acento grave é empregado essencialmente para marcar a fusão da preposição "a" com um segundo "a", que quase sempre é artigo (mas que nem sempre é artigo).
Em "Quem tem boca (ou "Sabrina') vai a Roma", por exemplo, o "a" que antecede "Roma" não pode receber acento grave por uma razão muito simples: não ocorre crase, ou seja, o "a" não resulta da fusão de coisa alguma. Quem tem boca vai a algum lugar. E chega de "a"!
O topônimo (ou seja, nome próprio de lugar) "Roma" não aceita artigo.
Ninguém diz que gosta "da Roma" ou que "Ele nasceu na Roma", diz?
Sim, sim, pode-se dizer que Fulano nasceu na Roma, se o assunto for futebol (determinado jogador é cria da Roma, time pelo qual jogou o grande Falcão). Em se tratando da monumental cidade, só se nasce "na" Roma ou se gosta "da" Roma quando se fala de uma particularidade da Cidade Eterna ("Isso vem da Roma dos imperadores"; "Ele nasceu na Roma dos Césares").
Sabrina e quem mais tiver boca vão a Roma, sem acento grave no "a", caro leitor. Sim, nesse caso o acento também não mudaria o preço do feijão ou o valor da propina de impolutos dignitários, mas o conhecimento da mecânica do sistema impede, por exemplo, que se grafe "escrever à Saramago" (construção possível) quando se quer "escrever a Saramago". É isso.


inculta@uol.com.br

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