São Paulo, segunda-feira, 24 de maio de 2010

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MOACYR SCLIAR

A emoção congelada


Achou esquisito cuidar de uma geladeira de pele, mas quando experimentou um dos casacos, sua vida mudou

Mulheres pagam até R$ 200 mensais para guardar casaco de pele de R$ 100 mil em "geladeira". Trata-se de um quarto onde a temperatura é mantida ao redor dos 15C e a umidade é baixíssima -ambiente ideal para que a pele se mantenha brilhante e macia. Para conservar a pele refrigerada, a cliente paga um aluguel que, dependendo do tamanho e do animal, vai de R$ 40 a R$ 200 por mês. A dona de uma estola, obviamente, paga menos que a de um casaco longo. O investimento mensal vale a pena, garante o proprietário de uma "geladeira de pele" em São Paulo. O casaco de zibelina russa chega a custar próximo dos R$ 100 mil. Mais modesto, o de coelho vale cerca de R$ 3.000. No fim do ano, as "geladeiras" veem uma debandada de peles. É a época em que as mulheres viajam para aproveitar o inverno rigoroso da Europa ou dos EUA. COTIDIANO, 16.MAI.10

QUANDO LHE FALARAM do emprego ela achou a coisa esquisita: cuidar de uma geladeira de pele? Nordestina que era, tinha medo de não se acostumar a baixas temperaturas. Mas o salário era razoável, ela precisava trabalhar e acabou aceitando a oferta. Tudo o que tinha a fazer era andar pelo aposento refrigerado, examinando os casacos e estolas que ali pendiam de cabides, verificando se não apresentavam manchas ou fungos.
Um dia resolveu experimentar um daqueles casacos. Aquilo mudou sua vida. Tão logo vestiu a sofisticada vestimenta sentiu-se diferente. Já não era uma empregada humilde. Não, sentia-se uma dama, e foi como dama que desfilou pela geladeira de peles, orgulhosa como se estivesse sob os olhares admirados, e talvez até despeitados, de dezenas de socialites.
E de fato ela se imaginava frequentando festas e banquetes. Para os quais escolhia cuidadosamente a peça a usar. Numa recepção em embaixada estrangeira iria usando um casaco de zibelina russa (Martes zibellina), mamífero da família dos mustelídeos; dava preferência às caríssimas peles das zibelinas de Barguzin, originárias das misteriosas florestas ao redor do lago Baikal. Já para uma quermesse ou algo semelhante, um casaco da humilde pele de coelho estaria bem. As estolas de raposa ficavam para as situações intermediárias.
Nesse mundo de fantasia refrigerada ela tem passado dias felizes. O que a atormenta é a ideia do fim do ano. Nessa época as mulheres ricas viajam para os Estados Unidos ou para a Europa; aproveitam o inverno rigoroso do hemisfério norte para exibir sua elegância.
E, assim, vai-se a primeira pele arrebatada pela proprietária, e logo outra, e mais outra, enfim, dezenas de peles deixam a geladeira quando apenas se anuncia uma baixa de temperatura.
Chega um momento em que ela fica sozinha no aposento refrigerado. Empregada de carteira assinada que é, o dono não a manda embora; mas, sem nenhum casaco ou estola para cuidar, tudo o que ela pode fazer é andar de um lado para outro, tiritando de frio e imaginando-se em um distante palácio, onde, vestindo uma fina estola ou um belo casaco, ela desfila diante dos olhares admirados de príncipes, condes e barões.
É uma grande emoção. Emoção congelada, mas emoção.


MOACYR SCLIAR escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal

moacyr.scliar@uol.com.br



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