São Paulo, segunda-feira, 24 de junho de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MOACYR SCLIAR

O jogo da Copa, o jogo da vida

Muita gente se dispôs a assistir o jogo entre Brasil e Inglaterra. Não o Antônio. Não tenho tempo para essas coisas, resmungou, preciso acordar cedo. E proibiu também a mulher de ligar a TV ou ouvir o rádio: não queria barulho em casa.
Ela suspirou. Se morassem na cidade, pelo menos teriam uma forma indireta de acompanhar a partida: a torcida após o gol. Mas não moravam na cidade. Moravam no campo -Antônio era um pequeno agricultor- e num lugar muito isolado. O único vizinho, num raio de alguns quilômetros, era o Zé Pedro. O Zé Pedro era fanático por futebol. Ele, sem dúvida, acompanharia o jogo. E sem dúvida soltaria foguetes. Zé Pedro era disso. De modo que a única esperança dela era agora o Zé Pedro.
Antônio não gostava do vizinho. Na verdade, estavam brigados. Antônio acusara Zé Pedro de estar dando em cima de sua mulher. Ciúmes não sem fundamento -Ritinha era muito bonita-, mas Zé Pedro ficara furioso e desde então não perdia ocasião de fazer pirraça. De modo que Antônio foi dormir, naquela noite, com desagradáveis pressentimentos.
Lá pelas tantas foi acordado pelo estouro de um foguete. Poderia ter ligado ou a TV ou o rádio, mas ainda tonto de sono, voltou a adormecer. Mais adiante, novo foguete e um longínquo grito de vitória: o Zé Pedro.
Às seis da manhã, Antônio levantou. Acho que o Brasil ganhou, disse Ritinha.
Ele não tinha tanta certeza. O Brasil podia até ter marcado dois gols. Mas, e se a Inglaterra tivesse feito três, ou quatro?
Dúvida razoável, mas não era essa que o atormentava. Era outra. E se o Zé Pedro tivesse soltado dois foguetes sem que o Brasil houvesse marcado gols? Ele seria capaz, sim, de fazer isso. Simplesmente para gozar com o vizinho, para debochar dele: não enganei o Antônio com a mulher, mas enganei-o com os foguetes -o trouxa pensa que o Brasil fez dois gols e o Brasil não fez gol nenhum.
Agora: isso era o que Zé Pedro faria, ou era o que ele, Antônio, faria, se estivesse no lugar do Zé Pedro? Uma resposta poderia revelar a Antônio muita coisa a respeito de si próprio. Mas ele não queria descobrir nada a respeito de si próprio. Preferiu ligar o rádio para descobrir o resultado da partida.


O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em reportagens publicadas no jornal.


Texto Anterior: Ouvidor vê falha de promotores
Próximo Texto: Maria Maluf será fechado de madrugada
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.